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quinta-feira, 15 de maio de 2025

A História do Caixão: Da Função Prática ao Símbolo Cultural

O caixão — também conhecido como ataúde, esquife, féretro ou urna funerária — é um dos objectos mais antigos associados aos ritos funerários da humanidade. Ao longo do tempo a sua forma, função e simbolismo evoluíram de acordo com factores culturais, religiosos, sociais e tecnológicos.

Origens e Antiguidade

A mais antiga evidência arqueológica de um caixão de madeira foi identificada na Tumba 4 do sítio de Beishouling, localizado na província de Shaanxi, na China. Datada de aproximadamente 5.000 a.C., esta descoberta representa um marco significativo na história das práticas funerárias humanas, pois sugere que, já no período Neolítico, havia uma clara preocupação com o tratamento do corpo após a morte e com sua separação simbólica do solo. Os restos identificados consistem em fragmentos de madeira organizados em torno de um esqueleto, interpretados pelos arqueólogos como os vestígios de uma estrutura retangular de madeira, possivelmente um caixão primitivo ou uma espécie de esquife. Embora rudimentar, essa construção demonstra a intenção de proteger e isolar o corpo — prática que perduraria ao longo dos milénios.

A cultura material de Beishouling, pertencente ao Neolítico inicial na região do rio Amarelo, já apresentava sinais de sedentarismo, desenvolvimento agrícola e estruturas sociais organizadas. A presença de um caixão sugere também um pensamento simbólico em torno da morte, possivelmente ligado a crenças espirituais ou à ancestralidade. Essa descoberta reforça a ideia de que o acto de enterrar os mortos em estruturas específicas — separando-os do ambiente — não é exclusivo das civilizações historicamente documentadas, mas sim uma prática muito mais antiga e difundida, que remonta aos primórdios da organização humana complexa. 

Além disso, a Tumba 4 de Beishouling antecipa, em milhares de anos, o uso sistemático de caixões de madeira em culturas como a egípcia, a mesopotâmica e a chinesa da dinastia Shang, demonstrando que as práticas funerárias sofisticadas têm raízes profundas na história da humanidade.

No Egipto Antigo, o caixão assume uma importância central: elaborado com madeira, pedra ou metais preciosos, o sarcófago era decorado com inscrições religiosas e imagens protectoras, reflectindo a crença na vida após a morte. Já na Grécia e em Roma, os enterramentos podiam incluir urnas cinerárias ou esquifes de pedra ou chumbo, muitas vezes com inscrições e elementos decorativos.


Tumba Egipcia com 3.000 anos a oeste da margem do Nilo em Luxor.
Idade Média e Cristianismo

Durante a Idade Média, o uso do caixão era restrito, sendo comum o enterro directo na terra, especialmente entre as camadas populares. O uso de ataúdes de madeira era reservado às elites, ao clero e às ordens religiosas. A orientação dos sepultamentos passou a obedecer normas cristãs, com a cabeceira voltada para o ocidente (poente), em alusão à ressurreição.

Túmulo da Rainha Santa Isabel, Mestre Pero de Coimbra, 1336 (c.), Convento de Santa Clara, a Nova, Coimbra, Portugal

Os féretros — estruturas temporárias, frequentemente ornamentadas — começaram a ser usados em cerimónias públicas antes da sepultura, especialmente em contextos nobres e eclesiásticos.

Modernidade e Industrialização

Com o avanço da urbanização e da ciência médica, especialmente nos séculos XVIII e XIX, houve mudanças significativas nos ritos fúnebres. O caixão passou a ser visto não apenas como um elemento ritual, mas também como um dispositivo sanitário, limitando a propagação de doenças. A Revolução Industrial permitiu a produção em massa de caixões, com materiais variados (madeira, metal) e níveis diferentes de ornamentação e preço.

Durante o século XIX, surgiram também caixões chamados "de segurança", com mecanismos que permitiriam escapar em caso de enterro acidental ainda em vida — reflexo dos medos da época relacionados à catalepsia e diagnósticos erróneos de morte.

Contemporaneidade

Na actualidade, os caixões continuam a desempenhar papel simbólico e funcional. A sua forma varia de acordo com contextos religiosos, culturais e legais. Há modelos padronizados para uso em funerais civis, caixões ecológicos e biodegradáveis, urnas funerárias individuais ou familiares, e práticas alternativas como cremação e sepultamento natural.

O caixão, portanto, permanece um objecto carregado de significados — não apenas um receptáculo físico, mas também uma expressão dos valores sociais, crenças espirituais e concepções culturais sobre a morte e o corpo.


Conclusão

A evolução do caixão ao longo do tempo revela muito sobre a relação das sociedades com a morte, a memória e o corpo. De simples contenção física a símbolo de status, fé e identidade, o caixão é um artefacto fundamental para compreender as práticas funerárias e seus desdobramentos históricos e antropológicos.



domingo, 23 de março de 2025

 


Exige, esta página, uma pequena nota introdutória! Esta nota ressalva o empenhamento do trabalho ainda não terminado (a missa ainda vai no adro) de duas pessoas com vontade de contar "coisas" sobre a Freguesia onde se trabalha há mais de vinte anos e onde se vive há mais de sessenta anos. Esperamos conseguir!

 Amália Marques / Manuela Moreira



A Cidade dos Mortos - Primeira Parte

"A cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos. Num sentido, aliás, a cidade dos mortos é a precursora, quase o núcleo, de todas as cidades vivas. A vida urbana cobre o espaço histórico entre o mais remoto campo sepulcral da aurora do homem e o cemitério final, a Necrópolis em que uma após outra civilização tem encontrado o seu fim."

 A expressão cemitério tem sua origem na cultura grega, sendo derivada de Koimetérion, que significa “eu durmo”, e do latim Coemeterium, referindo-se a um espaço destinado a funerais, também conhecido como Necrópole. Ao longo da história ocidental, diversas formas de cemitérios foram estabelecidas. 

Para que se possa entender a história dos cemitérios, é necessário reflectirmos sobre a evolução da concepção da morte que nortearam as práticas de enterramento desde os primórdios da humanidade. É a partir de uma determinada crença sobre a morte que podemos encontrar uma justificação sobre o destino que os vivos darão aos mortos. Só tendo como guia o imaginário da morte compreenderemos as várias formas de enterramento na história humana.

O desconhecimento sobre o fenómeno, morte, a falta de uma explicação para o desaparecimento repentino da força motora do corpo, para a sua putrefacção, levou a que muitos povos aceitassem que se tratava de um novo estágio do corpo, alimentando a crença de que, nesse novo estágio, os seus entes queridos continuavam a ter as mesmas necessidades que tiveram em vida. Esta é uma das razões porque os mortos eram enterrados com os seus objectos preferidos para além de ser colocado, junto das suas sepulturas, alimentos.

Podemos, pois, constatar que desde sempre a humanidade demonstrou um certo respeito pelos seus mortos, encontrando um lugar especial para os sepultar, na medida das suas crenças. 

 Por vezes enterravam, juntamente com os mortos, alimentos e utensílios, o que indica acreditarem numa vida do além. As sepulturas eram cobertas com pedras, para evitar profanação por parte de animais.

A morte é interpretada de maneiras distintas em diferentes culturas, como entre os hindus, os antigos gregos e os povos mesopotâmicos. Para os hindus, a morte é uma passagem para o Absoluto, enquanto que para os mesopotâmicos, é vista como uma condição degradada de existência. 

Ao contrário dos mesopotâmicos, os hindus praticam a cremação, mas não espalham cinzas; em vez disso, elas são preservadas como um meio de honrar o falecido e facilitar sua passagem para uma existência superior. O hinduísmo é uma das religiões que mais utiliza a cremação. Cinco categorias de indivíduos não podem ser cremados segundo o ritual hindu: crianças menores de 10 anos, grávidas, leprosos, falecidos por envenenamento de serpente e santos. Essas restrições referem-se à crença hindu de que a cremação significa a purificação da alma pelo fogo para o renascimento. Como crianças, santos e fetos não cometeram pecados, não precisam de purificação, sendo seus corpos depositados nas águas de um rio. Leprosos e mortos por serpentes possuem outras justificativas; no primeiro caso, a doença é uma punição dos deuses e, no segundo, acredita-se que a água pode ajudar o cadáver a vomitar e retornar à vida. 

Os antigos gregos, por sua vez, celebravam a morte como um momento de honra e memória. Os gregos também praticavam a cremação, que era vista como um acto de purificação para preparar o falecido para um novo status social entre os mortos. Ao contrário dos hindus, as cinzas dos falecidos eram cuidadosamente guardadas e comemoradas, reflectindo um significado cultural diferente atribuído ao acto de cremação.

A prática da cremação sofreu inúmeros preconceitos e proibições. Para os cristãos, o corpo é o templo do Espírito Santo e, por isso, não pode ser incinerado. Combatida, a ideia de destruir um cadáver pelo fogo era utilizada como vingança e punição a hereges e em casos excepcionais de guerras ou em outros momentos em que a mortalidade era significativa, como na peste negra. No século XIX, diante de epidemias, a prática ganhou força, principalmente com a epidemia de cólera na Inglaterra de 1840. Além da questão higienista, era uma atitude anticatólica, uma maneira de reforçar as diferenças entre os protestantes e os adeptos da Igreja Romana.

As perspectivas judaica e cristã sobre a morte compartilham semelhanças significativas, especialmente no que diz respeito à crença na vida após a morte e à importância dos rituais fúnebres. Ambas as tradições oferecem uma visão de esperança e continuidade, enfatizando a necessidade de viver uma vida moral e significativa para garantir um destino favorável após a morte. Os primeiros cristãos adotaram uma visão diferente da morte. Enquanto outras culturas acreditavam em uma vida após a morte dependente da memória, os cristãos viam a morte como uma transição para a vida eterna, o que moldou significativamente as práticas de sepultamento. Na civilização cristã, a morte foi percebida como uma passagem para outra dimensão da vida, seja de recompensa ou de prosperidade. A sepultura dos corpos foi realizada com solenidade, em respeito à expectativa da ressurreição. Essa visão cristã influenciou hábitos funerários que enfatizavam a dignidade e a importância do rito de passagem. 

A percepção da morte molda significativamente as práticas religiosas em todas as culturas, influenciando tudo, desde rituais funerários até discursos filosóficos e identidades comunitárias. Esses rituais ilustram as diversas maneiras pelas quais as culturas interpretam a morte e a vida após a morte, cada uma reflectindo crenças, valores e estruturas sociais únicos.

Várias foram as manifestações arquitectónicas, utilizadas ao longo dos tempos, que deram rosto à cidade dos mortos, como cavernas, sarcófagos, sepulcros e estátuas tumulares, entre outros. Desde a pré-história aos nossos tempos podemos identificar diferentes tipologias de espaços funerários que nos possibilitam um maior conhecimento sobre o mundo dos vivos, a sua cultura, a sociedade em que se inseriam. A importância da morte e dos lugares reservados à manifestação dos sentimentos que a mesma provoca, sempre existiu. Desde o paleolítico que os mortos foram os primeiros a ter uma morada permanente, à qual, possivelmente os vivos retornavam entre as suas viagens para lhes prestar a sua homenagem.  

Lewis Mumford na sua obra a "Cidade na História" teoriza sobre o nascimento da cidade celebrizando a existência das primeiras cidades "a cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos", uma vez que -  “Em meio às andanças inquietas do homem paleolítico, os mortos foram os primeiros a ter uma morada permanente: uma caverna, uma cova assinalada por um monte de pedras, um túmulo colectivo” - o que nos leva a concluir que a humanidade sempre se preocupou com a morte, interpretando-a, chorando-a ou festejando-a segundo as suas crenças.


Sabemos que no Neolítico os defuntos para além de serem colocados em cavernas cuja entrada era fechada por uma rocha, eram também inumados em sepulturas artificiais, os dolmens, um círculo de pedras erguidas cobertas por uma outra. Estas construções revelam a importância que, ao longo da História, a morte, os mortos e os lugares reservados a eles, adquiriram em cada cultura e em cada época. Por volta de 3500 a.C., aparecem as primeiras sepulturas colectivas, provavelmente familiares, e a hierarquização da sociedade perpetua-se nos túmulos: os dos chefes distinguem-se dos outros graças a objectos sumptuosos.

Na antiga civilização egípcia, os locais de sepultamento eram localizados fora dos centros urbanos, como as pirâmides monumentais de Gizé situadas ao longo do Rio Nilo e o cemitério da vila de Deir el Medineh, que possui túmulos piramidais organizados em áreas definidas. Os etruscos desenvolveram necrópoles com túmulos majestosos, alinhados e cobertos por vegetação, ao longo de uma via secundária, criando verdadeiras cidades para os mortos, como na Necrópole da Benditaccia em Cerveteri. Durante o Império Romano, foram erigidos mausoléus, sepulcros e catacumbas para acomodar os falecidos, localizados fora das cidades, como na antiga Via Ápia, a principal rota da época (312 a.C.). Nos primórdios do cristianismo, os crentes eram enterrados em catacumbas subterrâneas, que possuíam passagens irregulares com pequenos cômodos e nichos retangulares escavados nas paredes para abrigar os corpos, conhecidos como lóculos, como exemplificado na Catacumba de Priscilla (séculos II a V d.C., Roma). Durante a Idade Média, surgiram os locais sagrados, incluindo as Necrópoles Reais dentro das igrejas, adornadas com monumentos imponentes, construídos em homenagem à nobreza, como a Basílica de São Denis, onde repousaram os reis e rainhas da França entre os séculos VI e XVI. Posteriormente, foram estabelecidos Campos-santos, dedicados ao sepultamento de falecidos em terrenos religiosos ao ar livre. A partir do Séc. XVIII, os enterros eram profundamente religiosos, reflectindo o domínio da Igreja sobre as práticas funerárias. Com o tempo, houve uma individualização das sepulturas, anteriormente um privilégio da nobreza e do clero, e os rituais começaram a concentrar-se no âmbito familiar .

Os primeiros cemitérios cristãos, chamados de "Koimeteria", que significa dormitórios, reflectiam uma crença na morte como um estado temporário antes da ressurreição. 


Para continuar a ler sobre este tema click na Página Cemitério de Paranhos no friso do Blogue.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Necrópole Romana descoberta em Paranhos

 As escavações arqueológicas realizadas na envolvência da atual igreja revelaram uma singular e excepcional área de necrópole.

A descoberta da necrópole romana em Paranhos é, sem dúvida, um marco significativo para a arqueologia e a história do Porto e de Portugal. Esta descoberta não só redefine a compreensão da ocupação humana na região, como também oferece uma janela única para o passado, permitindo-nos explorar as práticas culturais, sociais e religiosas das comunidades romanas que habitaram a área há mais de dois mil anos.

Contextualização Histórica

A presença romana na Península Ibérica deixou um legado profundo, e a descoberta desta necrópole em Paranhos reforça a importância da região noroeste durante o Império Romano. A via romana que ligava Olisipo (Lisboa) a Bracara Augusta (Braga) era uma das principais rotas de comunicação e comércio, e a localização da necrópole ao longo dessa via sugere que Paranhos era um ponto estratégico, possivelmente um pequeno núcleo habitacional ou um local de passagem com significado ritualístico.

A Necrópole e suas Implicações

A identificação de 21 sepulturas, incluindo uma de uma criança, revela detalhes fascinantes sobre as práticas funerárias romanas. A presença de objetos como cerâmicas, vidros, lucernas e elementos de vestuário indica que os mortos eram enterrados com itens que poderiam ser úteis ou simbólicos na vida após a morte. Esses achados sugerem crenças profundas sobre a morte e o além, além de refletirem a organização social e o status dos indivíduos enterrados.

A sepultura da criança, em particular, é uma descoberta emocionante, pois oferece respostas sobre como as comunidades romanas lidavam com a perda de jovens membros. O espólio associado a essa sepultura pode indicar o valor simbólico atribuído às crianças e o cuidado com que eram enterradas.

A Via Romana e o Contexto Arqueológico

A via romana que passa por Paranhos não era apenas uma estrada, mas uma artéria vital que conectava importantes centros urbanos e facilitava o movimento de pessoas, mercadorias e ideias. A descoberta de vestígios dessa via, juntamente com a necrópole, sugere que Paranhos era mais do que um pequeno núcleo rural; era um local integrado numa rede maior de comunicação e trocas culturais.

Impacto na História do Porto

Esta descoberta desafia a narrativa tradicional de que a história do Porto começa apenas na Idade Média. A presença de uma necrópole romana e de uma via romana em Paranhos indica que a região já era significativa durante o período romano, possivelmente servindo como um ponto de ligação entre o litoral e o interior. Isso redefine a história antiga da cidade, destacando a importância de Paranhos como um local de ocupação contínua e de interação cultural.

A necrópole romana de Paranhos é uma descoberta extraordinária. Ela, para além de revelar detalhes sobre as práticas funerárias e a vida quotidiana das comunidades romanas, também coloca Paranhos no mapa como um local de grande relevância histórica e arqueológica. Esta descoberta vem demonstrar que o passado está sempre à espera de ser descoberto, e cada nova escavação pode reescrever a história que pensávamos conhecer.




sábado, 10 de fevereiro de 2018

Figuras Públicas

EM MEMÓRIA DE QUEM NASCEU, VIVEU E/OU MORREU EM PARANHOS.
FIGURAS PÚBLICAS DE PARANHOS

 Dr. Pedro Dias 


O Dr. Pedro Augusto Dias era natural de Vieira do Minho, onde nasceu em 1835, frequentou a Universidade de Coimbra e aí recebeu o grau de bacharel em Filosofia, formando-se depois em Medicina em 1860.
Veio então exercer a profissão no Porto, onde concorreu, com José Carlos Lopes e Joaquim Guilherme Coelho (Júlio Dinis) a uma cadeira da Escola Médico-Cirúrgica (1863-64)
Viveu na casa do Campo Lindo, junto à Capela da Srª da Saúde.
Em 1868 foi promovido a lente proprietário da cadeira de Operações, que regeu até à sua jubilação, em 1895.
Faleceu com 96 anos de idade, em 1931.
O Museu de Medicina do Hospital de S. João dedica uma das suas salas a este prestigiado médico.
A Rua que outrora de chamava Calçada do Campo Lindo tomou o seu nome, Rua Dr. Pedro Dias.





Figuras Públicas

EM MEMÓRIA DE QUEM NASCEU, VIVEU E/OU MORREU EM PARANHOS.
FIGURAS PÚBLICAS DE PARANHOS

Um «indomável beirão da Serra da Estrela» sepultado em Paranhos

RODOLFO A. ABREU (1903 - 1966)

Prestigiado antifascista muito respeitado no Norte do País, este professor destacou-se como pedagogo e também como articulista na imprensa nacional e regional. Conferencista e escritor, defendeu os direitos da criança, promoveu a formação pedagógica da classe docente do ensino primário e bateu-se corajosamente contra a Ditadura do Estado Novo.
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I - Rodolfo de Almeida Abreu nasceu em Seia, em 1903, e morreu no Porto a 8 de Outubro de 1966. Foi casado com Amélia Pais, também professora, e teve duas filhas: Helena Abreu, pintora e professora e Lucília Abreu, professora. Era tio de António Almeida Santos.

Foi em Seia que começou por exercer o magistério, mantendo uma actividade cívica constante. Escrevia regularmente artigos de opinião no jornal A Voz da Serra, assinando-os com o pseudónimo de «João Livre». Eram artigos de formação política de índole progressista, que versavam frequentemente temas de Educação - num esforço permanente de consciencialização do Povo - o que o levou a ser perseguido pela polícia política e acusado de fomentar ideias revolucionárias e anti-religiosas. Contou sempre com a solidariedade popular e, sobretudo, de colegas, mas em 1932 acabou por pedir a transferência para o Porto e, a partir daí, estendeu a sua colaboração a outros órgãos da imprensa regional e local, entre os quais o Notícias de Gouveia, O Povo, O Correio, O Combate, o República (de que foi um colaborador assíduo) e o Diário de Coimbra. Pugnava, então, pela defesa do professorado do Magistério Primário, considerando que era uma classe que o Estado Novo degradava; e denunciava a demagogia das reformas educativas do Salazarismo. Divulgou, pela palavra e pela acção, o documento «Nova Declaração dos Direitos da Criança».
No princípio da década de 40, Rodolfo Abreu já participava activamente no movimento de oposição democrática ao regime do Estado Novo.

Em 1949 apoiou a candidatura de Norton de Matos à presidência da República.
Foi preso pela PIDE em 11 de Abril de 1950, acusado de pertencer ao Partido Comunista Português. Durante a prisão escreveu um diário, «Diário de Prisão», depois completado com o «Diário de Julgamento». Julgado em tribunal plenário, contou com a defesa clarividente e corajosa do advogado António Macedo, tendo sido libertado após meses de cárcere e, depois, reintegrado na função pública.

Em 1958 apoiou a candidatura de Humberto Delgado à presidência da República. 
Foi amigo e camarada de personalidades como Ruy Luís Gomes, Virgínia Moura, Óscar Lopes, Armando de Castro, Raul de Castro, Aquilino Ribeiro, Papiniano Carlos, Amândio Silva, Carlos Cal Brandão, Orlando Juncal, Viriato Moura, Corino de Andrade. 
Como pedagogo desenvolveu várias actividades em prol da inovação pedagógica no Ensino Primário, sendo autor da brochura “Em Defesa do Desenho Expressivo da Criança” (Livraria Divulgação, Porto, 1960), uma obra que teve, então, grande repercussão na didática do desenho.
Foi um dos mais dinâmicos sócios fundadores da Cooperativa SEM – Sociedade Editora do Norte, lançando aí a ideia de uma Universidade Popular.
Foi membro activo da Casa da Beira-Alta no Porto e da Casa Museu Abel Salazar, a cujas direcções pertenceu.

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II - Durante muitos anos, antes do 25 de Abril de 1974 (mas também depois), por ocasião da data da sua morte, os mais destacados oposicionistas do Porto promoviam romagens à sua campa no Cemitério de Paranhos, para evocarem o nome e a obra do ilustre professor. Era uma cerimónia de afirmação antifascista, essa que ocorria regularmente por ocasião do dia 8 de Outubro. Na presença de muitos amigos e populares, algumas figuras da Resistência (tais como Óscar Lopes, António Macedo, Guedes Pinheiro e Flávio Martins) depositavam ramos de flores na sua campa e proferiam discursos, enaltecendo o carácter, a generosidade, o espírito racionalista e solidário, e a lucidez crítica de Rodolfo Abreu, considerado um «indomável beirão da Serra da Estrela» (1).


Depois do 25 de Abril a Câmara Municipal do Porto deu o seu nome a uma rua daquela cidade.

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III - O primeiro dia, no DIÁRIO DE PRISÃO
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Dia 11 de Abril de 1950
Tive, na véspera, oito horas de trabalho fatigante, daquele trabalho que só um professor primário conhece a medida. Descansava ainda pelas sete horas, quando a minha mulher ouviu a velha criada a dizer para alguém: “os senhores venham às nove horas que o senhor professor está ainda a descansar...”
Os agentes deviam ter-se rido da ingenuidade da Teresa. “Cinquenta e cinco anos que eu tenho e nunca vi uma coisa assim! Entrarem em casa àquela hora e sem pedirem licença!” – exclamou depois.
Um homem mal encarado (era o Pinto Soares) entra no meu quarto, sem o menor respeito pelo ambiente íntimo dum casal e convida-me a levantar. Entretanto, começa uma minuciosa busca em toda a casa, enquanto outro agente me acompanhava ao quarto de banho.
A minha mulher chorava e acusava a polícia da grosseria praticada ao mesmo tempo que os avisava de que sabia usarem de violências. Fez-se ouvir uma ameaça da parte do chefe de brigada, mas não produziu efeito porque minha mulher respondeu que de tal fama se não livravam.
Minha filha Lucília, mais serena, acompanha o Puga ao andar superior, onde tudo revolve e põe em desordem.
É-me permitido tomar o pequeno almoço, o que teve um paladar diferente dos outros dias. Entretanto, encontrava-me imperturbável. E lá vou eu num enorme carro, bem guardado por sete agentes. Tanta gente armada para um homem indefeso. (...)

Nota:
(1) Das notícias, nos jornais da época, dessas romagens de saudade, destacamos a realizada no 2º aniversário da sua morte (1968), que contou com uma centena e meia de pessoas (um número muito elevado, tendo em conta a repressão a que ficavam sujeitas nestas iniciativas), e na qual Óscar Lopes foi o principal orador; encontramos também especial referência a uma outra, essa após o 25 de Abril de 74, de cuja comissão promotora fizeram parte, entre muitos outros, Ruy Luís Gomes, Virgínia Moura, Lobão Vital, Óscar Lopes e José Morgado.

.Biografia em co-autoria de Helena Pato e Francisco Abreu Pessegueiro, neto deste resistente antifascista. Escrita a partir de alguns dados biográficos facultados por FAP e de diversas notícias da imprensa da época. As fotografias anexadas em comentários foram facultadas pelo referido neto.

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