O Cemitério de Paranhos



Exige, esta página, uma pequena nota introdutória! Esta nota ressalva o empenhamento do trabalho ainda não terminado (a missa ainda vai no adro) de duas pessoas com vontade de contar "coisas" sobre a Freguesia onde se trabalha há mais de vinte anos e onde se vive há mais de sessenta anos. Esperamos conseguir!

 Amália Marques / Manuela Moreira



A Cidade dos Mortos 

- Primeira Parte



"A cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos. Num sentido, aliás, a cidade dos mortos é a precursora, quase o núcleo, de todas as cidades vivas. A vida urbana cobre o espaço histórico entre o mais remoto campo sepulcral da aurora do homem e o cemitério final, a Necrópolis em que uma após outra civilização tem encontrado o seu fim."


 A expressão cemitério tem sua origem na cultura grega, sendo derivada de Koimetérion, que significa “eu durmo”, e do latim Coemeterium, referindo-se a um espaço destinado a funerais, também conhecido como Necrópole. Ao longo da história ocidental, diversas formas de cemitérios foram estabelecidas. 

Para que se possa entender a história dos cemitérios, é necessário reflectirmos sobre a evolução da concepção da morte que nortearam as práticas de enterramento desde os primórdios da humanidade. É a partir de uma determinada crença sobre a morte que podemos encontrar uma justificação sobre o destino que os vivos darão aos mortos. Só tendo como guia o imaginário da morte compreenderemos as várias formas de enterramento na história humana.

O desconhecimento sobre o fenómeno, morte, a falta de uma explicação para o desaparecimento repentino da força motora do corpo, para a sua putrefacção, levou a que muitos povos aceitassem que se tratava de um novo estágio do corpo, alimentando a crença de que, nesse novo estágio, os seus entes queridos continuavam a ter as mesmas necessidades que tiveram em vida. Esta é uma das razões porque os mortos eram enterrados com os seus objectos preferidos para além de ser colocado, junto das suas sepulturas, alimentos.

Podemos, pois, constatar que desde sempre a humanidade demonstrou um certo respeito pelos seus mortos, encontrando um lugar especial para os sepultar, na medida das suas crenças. 

 Por vezes enterravam, juntamente com os mortos, alimentos e utensílios, o que indica acreditarem numa vida do além. As sepulturas eram cobertas com pedras, para evitar profanação por parte de animais.

Interpretação da morte


A morte é interpretada de maneiras distintas em diferentes culturas, como entre os hindus, os antigos gregos e os povos mesopotâmicos. Para os hindus, a morte é uma passagem para o Absoluto, enquanto que para os mesopotâmicos, é vista como uma condição degradada de existência. 

Ao contrário dos mesopotâmicos, os hindus praticam a cremação, mas não espalham cinzas; em vez disso, elas são preservadas como um meio de honrar o falecido e facilitar sua passagem para uma existência superior. O hinduísmo é uma das religiões que mais utiliza a cremação. Cinco categorias de indivíduos não podem ser cremados segundo o ritual hindu: crianças menores de 10 anos, grávidas, leprosos, falecidos por envenenamento de serpente e santos. Essas restrições referem-se à crença hindu de que a cremação significa a purificação da alma pelo fogo para o renascimento. Como crianças, santos e fetos não cometeram pecados, não precisam de purificação, sendo seus corpos depositados nas águas de um rio. Leprosos e mortos por serpentes possuem outras justificativas; no primeiro caso, a doença é uma punição dos deuses e, no segundo, acredita-se que a água pode ajudar o cadáver a vomitar e retornar à vida. 

Os antigos gregos, por sua vez, celebravam a morte como um momento de honra e memória. Os gregos também praticavam a cremação, que era vista como um acto de purificação para preparar o falecido para um novo status social entre os mortos. Ao contrário dos hindus, as cinzas dos falecidos eram cuidadosamente guardadas e comemoradas, reflectindo um significado cultural diferente atribuído ao acto de cremação.

A prática da cremação sofreu inúmeros preconceitos e proibições. Para os cristãos, o corpo é o templo do Espírito Santo e, por isso, não pode ser incinerado. Combatida, a ideia de destruir um cadáver pelo fogo era utilizada como vingança e punição a hereges e em casos excepcionais de guerras ou em outros momentos em que a mortalidade era significativa, como na peste negra. No século XIX, diante de epidemias, a prática ganhou força, principalmente com a epidemia de cólera na Inglaterra de 1840. Além da questão higienista, era uma atitude anticatólica, uma maneira de reforçar as diferenças entre os protestantes e os adeptos da Igreja Romana.

As perspectivas judaica e cristã sobre a morte compartilham semelhanças significativas, especialmente no que diz respeito à crença na vida após a morte e à importância dos rituais fúnebres. Ambas as tradições oferecem uma visão de esperança e continuidade, enfatizando a necessidade de viver uma vida moral e significativa para garantir um destino favorável após a morte. Os primeiros cristãos adotaram uma visão diferente da morte. Enquanto outras culturas acreditavam em uma vida após a morte dependente da memória, os cristãos viam a morte como uma transição para a vida eterna, o que moldou significativamente as práticas de sepultamento. Na civilização cristã, a morte foi percebida como uma passagem para outra dimensão da vida, seja de recompensa ou de prosperidade. A sepultura dos corpos foi realizada com solenidade, em respeito à expectativa da ressurreição. Essa visão cristã influenciou hábitos funerários que enfatizavam a dignidade e a importância do rito de passagem. 

A percepção da morte molda significativamente as práticas religiosas em todas as culturas, influenciando tudo, desde rituais funerários até discursos filosóficos e identidades comunitárias. Esses rituais ilustram as diversas maneiras pelas quais as culturas interpretam a morte e a vida após a morte, cada uma reflectindo crenças, valores e estruturas sociais únicos.

Arquitectura na Cidade dos Mortos

Várias foram as manifestações arquitectónicas, utilizadas ao longo dos tempos, que deram rosto à cidade dos mortos, como cavernas, sarcófagos, sepulcros e estátuas tumulares, entre outros. Desde a pré-história aos nossos tempos podemos identificar diferentes tipologias de espaços funerários que nos possibilitam um maior conhecimento sobre o mundo dos vivos, a sua cultura, a sociedade em que se inseriam. A importância da morte e dos lugares reservados à manifestação dos sentimentos que a mesma provoca, sempre existiu. Desde o paleolítico que os mortos foram os primeiros a ter uma morada permanente, à qual, possivelmente os vivos retornavam entre as suas viagens para lhes prestar a sua homenagem.  

Lewis Mumford na sua obra a "Cidade na História" teoriza sobre o nascimento da cidade celebrizando a existência das primeiras cidades "a cidade dos mortos antecede a cidade dos vivos", uma vez que -  “Em meio às andanças inquietas do homem paleolítico, os mortos foram os primeiros a ter uma morada permanente: uma caverna, uma cova assinalada por um monte de pedras, um túmulo colectivo” - o que nos leva a concluir que a humanidade sempre se preocupou com a morte, interpretando-a, chorando-a ou festejando-a segundo as suas crenças.


Os mortos eram colocados em posição fetal na câmara,
que simboliza o útero, para o seu renascimento
Sabemos que no Neolítico os defuntos para além de serem colocados em cavernas cuja entrada era fechada por uma rocha, eram também inumados em sepulturas artificiais, os dolmens, um círculo de pedras erguidas cobertas por uma outra. Estas construções revelam a importância que, ao longo da História, a morte, os mortos e os lugares reservados a eles, adquiriram em cada cultura e em cada época. Por volta de 3500 a.C., aparecem as primeiras sepulturas colectivas, provavelmente familiares, e a hierarquização da sociedade perpetua-se nos túmulos: os dos chefes distinguem-se dos outros graças a objectos sumptuosos.


Na antiga civilização egípcia, os locais de sepultamento eram localizados fora dos centros urbanos, como as pirâmides monumentais de Gizé situadas ao longo do Rio Nilo e o cemitério da vila de Deir el Medineh, que possui túmulos piramidais organizados em áreas definidas. Os etruscos desenvolveram necrópoles com túmulos majestosos, alinhados e cobertos por vegetação, ao longo de uma via secundária, criando verdadeiras cidades para os mortos, como na Necrópole da Benditaccia em Cerveteri. Durante o Império Romano, foram erigidos mausoléus, sepulcros e catacumbas para acomodar os falecidos, localizados fora das cidades, como na antiga Via Ápia, a principal rota da época (312 a.C.). Nos primórdios do cristianismo, os crentes eram enterrados em catacumbas subterrâneas, que possuíam passagens irregulares com pequenos cômodos e nichos retangulares escavados nas paredes para abrigar os corpos, conhecidos como lóculos, como exemplificado na Catacumba de Priscilla (séculos II a V d.C., Roma). Durante a Idade Média, surgiram os locais sagrados, incluindo as Necrópoles Reais dentro das igrejas, adornadas com monumentos imponentes, construídos em homenagem à nobreza, como a Basílica de São Denis, onde repousaram os reis e rainhas da França entre os séculos VI e XVI. Posteriormente, foram estabelecidos Campos-santos, dedicados ao sepultamento de falecidos em terrenos religiosos ao ar livre. A partir do Séc. XVIII, os enterros eram profundamente religiosos, reflectindo o domínio da Igreja sobre as práticas funerárias. Com o tempo, houve uma individualização das sepulturas, anteriormente um privilégio da nobreza e do clero, e os rituais começaram a concentrar-se no âmbito familiar .

Segunda Parte 

Locais de Sepultamento e Práticas Funerárias em Portugal

Os locais e rituais de sepultamento em Portugal evoluíram ao longo do tempo, reflectindo influências culturais, religiosas e até mesmo sanitárias. Ao longo da história, Portugal foi influenciado por diversas culturas e civilizações, como os romanos, visigodos e árabes. Cada uma dessas culturas trouxe suas próprias práticas funerárias, que foram incorporadas e adaptadas ao longo do tempo. A predominância do cristianismo em Portugal teve um impacto significativo nos rituais de sepultamento. A Igreja Católica estabeleceu normas sobre como os mortos deveriam ser tratados, promovendo a ideia de sepultamento em cemitérios sagrados e a realização de missas em honra dos falecidos. Com o tempo, outras crenças e práticas religiosas também começaram a emergir, refletindo a diversidade da sociedade.


        1. Antiguidade e Período Pré-Romano 

  • Durante a pré-história, os mortos foram enterrados em dólmenes e antas , monumentos megalíticos que ainda hoje podem ser encontrados no país.
  • No tempo dos lusitanos (povos pré-romanos), praticava-se tanto a inumação (enterro do corpo) como a cremação.
Neolítico (c. 6.000 – 3.000 aC)


Idade do Bronze (c. 3000 – 800 aC)





A Anta da Barrosa, conhecida também como Dólmen da Barrosa ou Lapa dos Mouros, está situada na freguesia de Vila Praia de Âncora, na cidade de Caminha, dentro do distrito de Viana do Castelo. A mamoa original, que deveria circundá-la, simbolizava de certa maneira a concepção do espaço maternal da terra, onde o corpo humano descansava após a morte.






A anta de Vilarinho da Castanheira ou Pala da Moura, em Carrazeda de Ansiães, como também é conhecida localiza-se junto ao complexo de moinhos do Ribeiro do Coito. Esta estrutura, que já não apresenta qualquer vestígio da sua mamoa, insere-se numa tipologia, frequentemente observada na arquitectura funerária megalítica, câmara de configuração poligonal composta por oito esteios onde se inclui a laje de cabeceira. Possui ainda a tampa e um corredor orientado a nascente.


 Consultar Link:Antas e Dolmens

        2. Período Romano

  • Os romanos praticavam a cremação, mas a inumação tornou-se mais comum à medida que o Cristianismo se impunha. (O local onde os indigentes eram sepultados em Roma era a vala comum. As cinzas eram enterradas sob pedras ou através da abertura de um buraco no solo para acomodar uma cista ou um recipiente com as cinzas. Na superfície, poderia ser deixada uma lápide ou um cipreste, funcionando como uma estela memorial, onde ficariam registadas as informações mais significativas sobre a pessoa ali enterrada.)
  • As famílias abastadas costumavam escavar uma câmara subterrânea em suas propriedades, acessível como um poço. Nele, as urnas contendo as cinzas dos falecidos eram colocadas em buracos feitos nas paredes. Essa forma de sepultamento era chamada de columbário, pois esses nichos se assemelhavam a pombais, com compartimentos para aves.
  • Os corpos foram enterrados em necrópoles fora das cidades, muitas vezes com objectos pessoais.
  • Exemplos:
📍 Necrópole Romana de Vilar de Perdizes (Montalegre) – Sepulturas de inumação e cremação, típicas da época romana.
📍 Necrópole Romana de Braga – Enterros com lápides e objetos funerários, demonstrando a presença romana na antiga Bracara Augusta .

        3. Idade Média

  • O Cristianismo consolidou a prática da inumação. Os mortos foram enterrados junto às igrejas ou dentro delas (para membros da nobreza e clero).
  • Os cemitérios foram encontrados em torno das igrejas paroquiais e serviram também como espaços comunitários.
  • Exemplos:
📍Sepulturas Antropomórficas de Santo André de Fiães (Melgaço) – Túmulos escavados na rocha, usados ​​por monges.
📍 Necrópole Medieval de S. João de Cova (Fafe) – Sepulturas colectivas de pedra, típicas da época medieval.

        4. Séculos XVIII e XIX – Criação dos Cemitérios

  • Com o crescimento das cidades e preocupações sanitárias, foi proibido enterrar os mortos dentro das igrejas (Lei de 1835).
  • Começaram a surgir os cemitérios municipais , distantes dos centros urbanos.
  • Exemplos:
📍 Criptas da Sé de Braga – Túmulos de bispos e nobres dentro da catedral.
📍 Cemitério do Prado do Repouso (Porto) – Um dos primeiros cemitérios municipais do Norte, criado no século XIX.

        5. Século XX até hoje

  • A sepultura tradicional (enterro em terra) e os jazigos (estruturas de pedra onde os corpos são colocados em gavetas) tornaram-se as formas mais comuns de sepultamento.
  • A cremação, embora menos comum em Portugal do que noutros países, tem vindo a aumentar nas últimas décadas.
  • Existem também columbários , onde são guardadas as urnas com as cinzas dos falecidos.
  • Exemplos:
📍 Cemitério de Agramonte (Porto) – Um dos mais emblemáticos do Norte, com jazigos de famílias importantes.
📍 Cemitério de Paranhos – Importante cemitério urbano, incluindo opções de cremação.





 

Cemitério de Paranhos 





Actualmente, os rituais fúnebres em Portugal seguem normas católicas, embora práticas mais modernas, como cremação e cemitérios ecológicos, estejam a ganhar espaço.


Práticas de sepultamento

Durante meados do século XIX, Portugal experimentou mudanças significativas nas práticas de sepultamento, amplamente influenciadas por preocupações de saúde pública e legislação governamental. A transição das práticas tradicionais de sepultamento dentro das igrejas para o estabelecimento de cemitérios públicos marcou uma mudança fundamental nas atitudes sociais em relação à morte e ao sepultamento.

Embora o atraso de Portugal em termos legislativos seja evidente, o país não ficou completamente alheio às novas ideias sobre saúde pública. Conceitos relacionados à higiene e à medicina preventiva conquistaram apoio não apenas entre médicos e intelectuais, mas também entre altos funcionários do Estado absolutista, como o Intendente da Polícia, Pina Manique.

De facto, as preocupações de Pina Manique com a saúde tornaram-se bastante evidentes na longa luta que ele travou, desde 1787, junto ao governo da Rainha D. Maria I, em prol da criação de cemitérios, especialmente em Lisboa, fundamentando-se na promoção da saúde pública e no respeito pelos mortos.

Apesar da hesitação, ou até mesmo da resistência, que os planos de Pina Manique geraram, a sua batalha não foi totalmente em vão. Em 1796, uma ordem régia determinou a aquisição de terrenos para a construção de dois grandes cemitérios fora dos muros da capital. Isso não era uma iniciativa inédita. Embora as igrejas, os adros e os claustros tivessem sido locais comuns de sepultamento, desde o século XVI já existiam cemitérios em Lisboa como prevenção contra a peste e outras doenças. No entanto, no final do século XVIII, a abordagem em relação a essas medidas havia mudado radicalmente: tratava-se agora de uma verdadeira campanha, embora limitada, contra os locais de sepultamento tradicionais, feita em defesa dos novos princípios sobre higiene e saúde pública. Essa campanha continuou mesmo após a passagem de Pina Manique, gerando publicações académicas que discutiam, de maneira detalhada, os sérios riscos à saúde pública resultantes de sepultamentos nas igrejas. Contudo, isso não resultou em nenhuma acção legislativa abrangente.

No Projecto de Regulamento Geral da Saúde da Assembleia Legislativa, estava previsto o veto a sepulcros nas igrejas, assim como a instalação de cemitérios em todas as paróquias do reino. No entanto, essa proposta nunca chegou a ser debatida nas Cortes.

A falta de legislação nessa área perdurou até Setembro de 1833, quando, na guerra civil e após a tomada de Lisboa pelo exército liberal, o governo de D. Pedro emitiu uma ordem ao Cardeal Patriarca e ao Intendente da Polícia, proibindo os sepultamentos nas igrejas, nos adros e nos claustros da capital. 

Argumentos de cunho sanitário foram utilizados para justificar a situação, com o governo enfatizando que "essas práticas danosas à saúde pública" já tinham sido eliminadas "em todos os países de fé católica." Contudo, a proibição foi imposta, principalmente, por motivos claros e directos relacionados à epidemia de cólera que assolava a cidade. Usando justificativas contemporâneas, recorreu-se a uma solução bastante antiga. Uma norma legal de Outubro de 1833 evidenciava a pressa com que essas acções eram implementadas. Era ordenada a criação temporária de cemitérios nas imediações de três conventos na capital: Graça, Barbadinhos e Santa Apolónia. Essa decisão foi apoiada pelas questões de urgência e pela necessidade de uma economia mais sólida.

A implementação dessas normas gerou contestações que o governo criticou fortemente. De facto, não apenas as sepulturas dentro das igrejas continuavam, como também eram observados "graves abusos", incluindo "o abandono de corpos nas ruas", um acto considerado intencional e que tinha como propósito "incitar no povo aversão às decisões do governo".

Diante disso, o governo designou o Vigário Geral do Patriarcado para investigar as causas desses “abusos”, sugerindo que poderiam ter origem na má vontade dos líderes religiosos. Contudo, as restrições impostas na capital em 1833 não foram motivadas apenas por situações momentâneas. Elas foram seguidas, um ano após o término da guerra, pela promulgação de regulamentações que condenavam de forma definitiva as práticas funerárias tradicionais.

A lei de 21 de Setembro de 1835 estabelecia a criação de cemitérios que deveriam ser localizados fora das áreas urbanas, além de proibir de forma definitiva os enterramentos nas igrejas. A responsabilidade pela implementação da lei recaiu sobre as prefeituras, que deveriam escolher terrenos municipais mais adequados para a construção dos cemitérios, assim como determinar a quantidade necessária por município.

Um decreto datado de 8 de Outubro detalha ainda mais os aspectos da lei, acrescentando directrizes sobre o próprio acto de sepultar. As autoridades locais, incluindo os conselhos paroquiais, deveriam não apenas garantir a manutenção dos cemitérios, mas também cuidar dos serviços funerários. Assim, era ordenado que tivessem à disposição caixões e "todos os outros materiais essenciais para o transporte e sepultamento adequado dos falecidos". Essas novas atribuições teriam o financiamento suportado pela população, por meio do pagamento de uma taxa. Aqueles que eram mendigos, soldados ou cidadãos sem uma renda anual de 100.000 réis (os excluídos do censo eleitoral) não precisariam pagar. O valor da taxa a ser recolhida dos contribuintes seria definido pelos municípios e pelos conselhos paroquiais, considerando a respectivo rendimento.

Em janeiro de 1837, a administração setembrista reestruturou os serviços do Ministério do Reino que eram os responsáveis pela política de saúde pública. Essa reestruturação resultou na unificação das normas de 1835 sobre os cemitérios configurando um novo quadro legal. Uma rede sanitária centralizada e hierárquica foi criada, com o Conselho de Saúde no topo. Este conselho tinha representantes e sub-representantes em níveis regionais e locais. Nos distritos, os delegados de saúde precisavam, obrigatoriamente, ser médicos. No nível municipal, as autoridades de saúde eram as autoridades administrativas que estavam em funções. O “cabeça de saúde”, a autoridade sanitária na paróquia, era responsável imediatamente pela implementação das normas legais estabelecidas em 1835.

A partir de então, um novo procedimento burocrático deveria ser seguido para os enterros. Estes precisavam ser autorizados por uma licença, denominada “bilhete de enterramento”, emitida pelo “cabeça de saúde” após a apresentação de uma certidão de óbito fornecida por um médico. Os preços dos “bilhetes de enterramento” eram fixados por lei: 360 réis nas cidades e 240 réis nas outras localidades. No novo sistema, apenas um terço dessa receita permaneceria com a paróquia, enquanto os outros dois terços seriam destinados ao Conselho de Saúde.

Durante o governo de Costa Cabral, a legislação de 10 de Janeiro de 1844 novamente reorganizou os serviços de saúde pública. Essa lei, frequentemente chamada de “lei da saúde”, é geralmente vista como responsável pelos primeiros tumultos da Maria da Fonte. No entanto, as novas normas para os serviços de saúde não diferiam muito das de 1837, especialmente no que diz respeito às regras sobre inumações. A estrutura hierárquica das autoridades sanitárias em níveis central, regional e local permaneceu, mas houve progressos em direcção à exigência da participação dos profissionais de saúde, nomeadamente em relação ao perfil das autoridades municipais; os antigos subdelegados de saúde, agora chamados de vice-provedores, precisavam ser médicos municipais e não mais administradores dos concelhos, como já estabelecido na legislação de 1837.

A Lei estipulava ainda que:

1. O preço dos “bilhetes” seria o mesmo para todas as pessoas de uma mesma família.

2. O preço de enterramento dos mendigos, dos soldados, dos marinheiros do Estado, dos guardas municipais, de todos aqueles que nos termos da lei eleitoral não pudessem votar nas eleições primárias (pagando menos de 100.000 réis de imposto) como os de pessoas pertencendo a corporações religiosas seriam gratuitos.

3. Os “bilhetes” concedidos seis meses depois da publicação da lei seriam tarifados pelo triplo da taxa respectiva em todas as aglomerações onde não existissem cemitérios até à data da sua construção.

Com as novas regras para os serviços de saúde, a população revolta-se, especialmente na região do Minho, onde em 1846 aconteceram os mais graves tumultos que iniciaram a revolta conhecida como da “Maria da Fonte”.



Isso é sugerido pelas informações divulgadas pelo Periódico dos Pobres do Porto, que relata a intervenção militar em várias paróquias do distrito do Porto, como Jovim (no concelho de Gondomar) e Peroselo (no concelho de Penafiel). Na verdade, em ambas as situações, os moradores chegaram a querer desenterrar os corpos do cemitério para realizar novos sepultamentos na igreja. No entanto, as iniciativas da população, que reflectiam a vontade de manter as antigas tradições funerárias, nem sempre enfrentavam a oposição do clero ou das autoridades locais. Em algumas ocasiões, essas acções encontraram a tolerância, ou até mesmo a conivência desses líderes, fosse por empatia ou devido à pressão crescente do povo ser incontrolável. 


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Podemos, assim concluir, que as principais dificuldades na aplicação da interdição de enterros nas igrejas em Portugal incluíram:

1. Resistência Popular: Houve uma oposição significativa da população às novas práticas funerárias. Muitos continuaram a realizar enterros nas igrejas, resultando em práticas ilegais e atrasos na instalação de cemitérios.

2. Legislação Insuficiente: A primeira lei que proibia definitivamente os enterros nas igrejas foi promulgada em 1835, mas a implementação efectiva dessa lei enfrentou vários obstáculos. Até a adopção de medidas gerais, muitos ainda insistiam nas práticas tradicionais.

3. Crise Sanitária: A interdição foi, em parte, motivada por uma epidemia de cólera, mas a urgência das medidas não foi suficiente para acabar com as práticas tradicionais imediatamente. As autoridades encontraram dificuldades para impor a nova regulamentação em um contexto de crise sanitária.

4. Influência Eclesiástica: Certa resistência por parte do clero, revelou-se um importante apoio à negação da Lei. Exemplos de práticas de enterro em instituições religiosas contradiziam as novas leis .

5. Desigualdade Regional: A aplicação das novas disposições variou consideravelmente entre as diferentes regiões do país. No Norte, por exemplo, uma maior percentagem de enterros continuava a ocorrer nas igrejas em comparação com o Sul, indicando que a resistência era localizada e muitas vezes forte.



Esses factores em conjunto demonstram como a mudança de práticas funerárias levou muito tempo, enfrentando obstáculos significativos em Portugal. Actualmente, os rituais fúnebres em Portugal seguem normas católicas, embora práticas mais modernas, como cremação e cemitérios ecológicos, estejam a ganhar espaço.

Práticas funerárias 

Inicialmente, no tratado de Santo Agostinho "Sobre o Cuidado dos Mortos", escrito no século V, a preocupação com a morte estava mais relacionada à alma do que ao corpo físico. Sugeriam-se a oferta de eucaristias e esmolas para os falecidos sem práticas específicas para o corpo morto. Entre o final do século XII e o início do século XIII, novas práticas sociais e mudanças nas crenças, retomadas no Quarto Concílio de Latrão, colocaram as confissões no centro da vida cristã, individualizando a morte. Isso fez com que, em vez de ser uma certeza que não causasse muita preocupação, o momento da morte tornou-se uma certeza exigindo que os indivíduos se confessassem.

Como parte dessa individualização, as pessoas passaram a concentrar-se na salvação da alma, levando a práticas comuns de preparação para a morte centradas na confissão e no perdão. Ao mesmo tempo, no século XIII, os rituais funerários da Igreja passaram a superar os costumes usuais. Os corpos mortos eram levados das casas para as Igrejas, que regulamentavam os funerais.

O século XV, em Portugal, foi marcado por um declínio demográfico devido à Peste Negra ocorrida no século XIV e outras epidemias que afectaram a Península Ibérica. Os problemas comuns da Idade Média, como alta mortalidade infantil e baixa expectativa de vida, pioraram a situação. A vida era marcada por uma familiaridade com a morte, pois a presença da morte súbita, especialmente devido às pragas, intensificava o medo em torno dela. A peste, como um tipo de morte súbita e brutal levou a rituais funerários mínimos e à negligência do corpo morto.

As práticas delineadas no Sínodo de D. Pedro Vaz Gavião incluíam sacramentos de cura, comunhão e confissão, bem como testamentos e últimos rituais. O sacramento da cura deveria ser oferecido primeiro, com o objectivo de curar os doentes. Se a cura falhasse, a comunhão e a confissão tornavam-se cruciais para alcançar uma boa morte. Apesar de os indivíduos escolherem seus caminhos ao longo da vida, os momentos que os aproximavam da morte eram considerados os mais importantes, ainda que o indivíduo escolhesse entre os caminhos que o levariam ao paraíso e os caminhos que o levariam ao inferno os momentos anteriores à morte eram os mais importantes, pois solidificavam essas escolhas.

O sacramento da cura tinha que ser autorizado pela Igreja, com deliberações severas para o não cumprimento. Este sacramento lidava mais com a cura da alma do que do corpo. A confissão correcta foi autorizada a seguir as directrizes clericais e, entre os séculos XIII e XV através dos manuais para confessores que circularam amplamente na Europa. A confissão frequente era encorajada, embora muitos só se confessassem na Páscoa ou quando enfrentassem a morte iminente. No século XV, a confissão era uma prática profundamente enraizada, entendida como um meio de obter perdão e acesso à Eucaristia. O clero soube que os leigos se confessavam com menos frequência, causando insatisfação entre os fiéis. No entanto, os cristãos não eram obrigados a confessar-se mais do que uma vez por ano, o que levou a maioria a confessar-se apenas durante a Páscoa. A presença de confessores era considerada às vezes mais crucial do que a de médicos, pois a alma era considerada mais valiosa do que o corpo.

A comunhão para os doentes pode ocorrer em casa se ficarem gravemente doentes. Um altar também poderia ser montado fora da igreja em casos extremos para garantir a confissão antes da morte. Houve consequências rigorosas para o enterro daqueles que morriam sem confissão, reforçando a importância dos ritos sacramentais.

Os testamentos também se tornaram componentes sociais cruciais após o século XIII como uma forma de se desapegar das posses terrenas e evitar a ganância. Eles reflectiam os desejos do falecido em relação ao seu funeral e sepultamento. Como o momento da morte é imprevisível, os testamentos eram frequentemente redigidos ou revistos ao longo da vida. O Sínodo de 1500 insistiu em manter as disposições dos testamentos.



Por fim a extrema-unção. Dos três sacramentos mencionados, esse era o único voltado exclusivamente para aqueles que estavam prestes a falecer. De acordo com o sínodo de 1538, a administração deste sacramento deveria ser feita por dois clérigos em situações normais, podendo ser realizada por um único sacerdote em casos de urgência. Além disso, o sínodo estipulava que, se a pessoa falecesse sem receber a extrema-unção, os padres teriam que pagar uma multa de 50 réis (Constituições do arcebispado de Braga, 1538, fl. 16v). Este sacramento destinava-se a todos os cristãos que se encontrassem em risco de morte, desde que mantivessem suas faculdades mentais. O sínodo de 1697 proibia a administração da extrema-unção a menores, pois não tinham a idade necessária para pecar mortalmente, e a indivíduos em pecado mortal público. No caso de pessoas com deficiências mentais ou que não podiam falar, a extrema-unção poderia ser administrada se um fiel confirmasse a sua intenção ao sacerdote. Se o padre não soubesse se o enfermo estava vivo ou morto, era permitido administrar o sacramento. O sínodo de 1697 reiterou as directrizes do de 1538, enfatizando que a extrema-unção deveria ser feita por dois sacerdotes, embora permitisse que, na ausência de um deles, um leigo pudesse auxiliar o clérigo (Constituições synodaes, 1697, pp. 93–95). O sínodo também mencionou alguns itens necessários para a celebração da extrema-unção, como um prato com água, uma toalha, o recipiente com os santos óleos, uma patena com estopas, a cruz, e um livro contendo as fórmulas que o padre deveria ler. O sacerdote untava a boca, os olhos e as palmas do moribundo. O principal objectivo da extrema-unção era proporcionar um bom falecimento, recordando ao enfermo a paixão de Jesus Cristo (Constituições synodaes, 1697, pp. 96–97).

Finalmente, os rituais realizados na morte, não podiam ocorrer aos domingos ou dias festivos, condenando a Igreja os lutos excessivos e expressões perturbadoras de pesar, como gritos, beijos nos defuntos, pois assemelhavam-se às tradições pagãs, permitindo apenas orações pela alma. Embora essas proibições fossem difíceis de importar, a prática do luto por meio de carpideiras contratadas continuou durante a Idade Média, apesar da oposição da Igreja.

Durante a Idade Média, os bispos portugueses estiveram continuamente focados na administração dos sacramentos. As repetidas menções nas constituições sinodais destacaram a necessidade de transmitir directrizes essenciais ao clero. Esperava-se que o clero verificasse os indivíduos em suas paróquias para oferecer os sacramentos. O não cumprimento das práticas preparatórias poderia resultar não apenas numa morte ruim, mas também num destino de sepultamento diferente, pois aqueles que morriam sem sacramentos enfrentavam restrições no sepultamento, sendo negados rituais funerários adequados e locais de sepultamento sagrados.

Sabemos que os rituais funerários em Portugal variam entre as regiões, reflectindo tradições locais, influências religiosas e práticas comunitárias. Apesar de a Igreja Católica ter um papel predominante nos funerais portugueses, algumas diferenças regionais são notáveis.


Gustave Courbet.1850

Norte de Portugal

  • Velório prolongado : Em muitas aldeias do Norte, o velório pode durar uma noite inteira, com a presença de familiares, amigos e vizinhos.
  • Luto específico : Em algumas zonas rurais, o luto ainda é marcado para vestuário preto durante meses ou anos, especialmente para viúvas.
  • Choros e lamentações : Ainda se encontram, sobretudo em Trás-os-Montes e Minho, mulheres que expressam o luto de forma intensa, às vezes com pranto coletivo (as chamadas "carpideiras").

Centro de Portugal

  • Procissões a pé : Em várias aldeias do Centro, o caixão pode ser transportado por amigos ou familiares a pé até ao cemitério.
  • Cantos e rezas comunitárias : Grupos organizados podem entoar cânticos religiosos ao longo do velório e do cortejo fúnebre.
  • Merenda após o funeral : Em algumas localidades, é costume os familiares oferecerem uma refeição aos presentes após o enterro.

Sul de Portugal (Alentejo e Algarve)

  • Silêncio e sobriedade : Ao contrário do Norte, os funerais no Alentejo tendem a ser mais silenciosos e contidos.
  • Superstições: Em algumas zonas do Alentejo, existem superstições sobre os mortos, como evitar passar por certos caminhos após um funeral.
  • Reuniões familiares : É comum que uma família se junte para refeições em memória do falecido, especialmente nos sete dias após o enterro.

Ilhas (Açores e Madeira)

  • Círios e novenas : Nos Açores, é comum haver novenas (orações diárias durante nove dias) para a alma do falecido.
  • Exposição do corpo em casa : Em algumas ilhas mais pequenas, o velório pode ainda ser feito na casa do falecido antes de seguir para a igreja.
  • Procissões fúnebres longas : Em certas localidades, os funerais incluem longas caminhadas até o cemitério, com paragens para rezas.

Apesar dessas diferenças regionais, o respeito pela tradição católica e o forte componente comunitário marcam os rituais funerários em todo o país.








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