O Cemitério de Paranhos - a morte e o culto aos mortos em Portugal


A morte e o culto aos mortos em Portugal

Inicialmente, no tratado de Santo Agostinho "Sobre o Cuidado dos Mortos", escrito no século V, a preocupação com a morte estava mais relacionada à alma do que ao corpo físico. Sugeriam-se a oferta de eucaristias e esmolas para os falecidos sem práticas específicas para o corpo morto. Entre o final do século XII e o início do século XIII, novas práticas sociais e mudanças nas crenças, retomadas no Quarto Concílio de Latrão, colocaram as confissões no centro da vida cristã, individualizando a morte. Isso fez com que, em vez de ser uma certeza que não causasse muita preocupação, o momento da morte tornou-se uma certeza exigindo que os indivíduos se confessassem.
Como parte dessa individualização, as pessoas passaram a concentrar-se na salvação da alma, levando a práticas comuns de preparação para a morte centradas na confissão e no perdão. Ao mesmo tempo, no século XIII, os rituais funerários da Igreja passaram a superar os costumes usuais. Os corpos mortos eram levados das casas para as Igrejas, que regulamentavam os funerais.

Locais de Sepultamento e Práticas Funerárias em Portugal

Os locais e rituais de sepultamento em Portugal evoluíram ao longo do tempo, reflectindo influências culturais, religiosas e até mesmo sanitárias. Ao longo da história, Portugal foi influenciado por diversas culturas e civilizações, como os romanos, visigodos e árabes. Cada uma dessas culturas trouxe suas próprias práticas funerárias, que foram incorporadas e adaptadas ao longo do tempo. A predominância do cristianismo em Portugal teve um impacto significativo nos rituais de sepultamento. A Igreja Católica estabeleceu normas sobre como os mortos deveriam ser tratados, promovendo a ideia de sepultamento em cemitérios sagrados e a realização de missas em honra dos falecidos. Com o tempo, outras crenças e práticas religiosas também começaram a emergir, refletindo a diversidade da sociedade.

        1Antiguidade e Período Pré-Romano 

  • Durante a pré-história, os mortos foram enterrados em dólmenes e antas , monumentos megalíticos que ainda hoje podem ser encontrados no país.
  • No tempo dos lusitanos (povos pré-romanos), praticava-se tanto a inumação (enterro do corpo) como a cremação.
Neolítico (c. 6.000 – 3.000 aC)


Idade do Bronze (c. 3000 – 800 aC)



A Anta da Barrosa, conhecida também como Dólmen da Barrosa ou Lapa dos Mouros, está situada na freguesia de Vila Praia de Âncora, na cidade de Caminha, ndistrito de Viana do Castelo.

A mamoa original, que deveria circundá-la, simbolizava de certa maneira a concepção do espaço maternal da terra, onde o corpo humano descansava após a morte.




A anta de Vilarinho da Castanheira ou Pala da Moura, em Carrazeda de Ansiães, como também é conhecida localiza-se junto ao complexo de moinhos do Ribeiro do Coito. Esta estrutura, que já não apresenta qualquer vestígio da sua mamoa, insere-se numa tipologia, frequentemente observada na arquitectura funerária megalítica, câmara de configuração poligonal composta por oito esteios onde se inclui a laje de cabeceira. Possui ainda a tampa e um corredor orientado a nascente.   

Consultar Link:Antas e Dolmens  
                                                

  2. Período Romano

  • Os romanos praticavam a cremação, mas a inumação tornou-se mais comum à medida que o Cristianismo se impunha. (O local onde os indigentes eram sepultados em Roma era a vala comum. As cinzas eram enterradas sob pedras ou através da abertura de um buraco no solo para acomodar uma cista ou um recipiente com as cinzas. Na superfície, poderia ser deixada uma lápide ou um cipreste, funcionando como uma estela memorial, onde ficariam registadas as informações mais significativas sobre a pessoa ali enterrada.)
  • As famílias abastadas costumavam escavar uma câmara subterrânea em suas propriedades, acessível como um poço. Nele, as urnas contendo as cinzas dos falecidos eram colocadas em buracos feitos nas paredes. Essa forma de sepultamento era chamada de columbário, pois esses nichos se assemelhavam a pombais, com  compartimentos para aves.
  • Os corpos foram enterrados em necrópoles fora das cidades, muitas vezes com objectos pessoais.
  • Exemplos:
📍 Necrópole Romana de Vilar de Perdizes (Montalegre) – Sepulturas de inumação e cremação, típicas da             época romana.
📍 Necrópole Romana de Braga – Enterros com lápides e objetos funerários, demonstrando a presença             romana na antiga Bracara Augusta .

        3. Idade Média

  • O Cristianismo consolidou a prática da inumação. Os mortos foram enterrados junto às igrejas ou dentro delas (para membros da nobreza e clero).
  • Os cemitérios foram encontrados em torno das igrejas paroquiais e serviram também como espaços comunitários.
  • Exemplos:
📍Sepulturas Antropomórficas de Santo André de Fiães (Melgaço) – Túmulos escavados na rocha, usados ​​            por monges.
📍 Necrópole Medieval de S. João de Cova (Fafe) – Sepulturas colectivas de pedra, típicas da época                     medieval.

        4. Séculos XVIII e XIX – Criação dos Cemitérios

  • Com o crescimento das cidades e preocupações sanitárias, foi proibido enterrar os mortos dentro das igrejas (Lei de 1835).
  • Começaram a surgir os cemitérios municipais , distantes dos centros urbanos.
  • Exemplos:
📍 Criptas da Sé de Braga – Túmulos de bispos e nobres dentro da catedral.
📍 Cemitério do Prado do Repouso (Porto) – Um dos primeiros cemitérios municipais do Norte, criado no             século XIX.

        5. Século XX até hoje

  • A sepultura tradicional (enterro em terra) e os jazigos (estruturas de pedra onde os corpos são colocados em gavetas) tornaram-se as formas mais comuns de sepultamento.
  • A cremação, embora menos comum em Portugal do que noutros países, tem vindo a aumentar nas últimas décadas.
  • Existem também columbários , onde são guardadas as urnas com as cinzas dos falecidos.
  • Exemplos:
📍 Cemitério de Agramonte (Porto) – Um dos mais emblemáticos com jazigos de famílias importantes.
📍 Cemitério de Paranhos – Cemitério urbano (Fregueia da cidade do Porto), incluindo opções de cremação.


Actualmente, os rituais fúnebres em Portugal seguem normas católicas, embora práticas mais modernas, como cremação e funerais em cemitérios ecológicos, estejam a ganhar espaço.

 

Cemitério de Leiria

Um funeral ecológico, frequentemente denominado funeral verde ou sustentável, é uma cerimónia concebida para reduzir ao máximo o impacto ambiental. Isso pode englobar a utilização de materiais biodegradáveis, métodos de sepultamento que evitam o emprego de produtos químicos prejudiciais, além de opções que favorecem a preservação do meio ambiente.

Desde cerimónias funerárias complexas até métodos únicos, os funerais ecológicos representam uma escolha digna e consciente, demonstrando um compromisso com a sustentabilidade e o respeito ao meio ambiente. Em Portugal, observa-se um aumento nas opções disponíveis para aqueles que desejam planear uma despedida sustentável. Compreendendo as práticas, os custos e as implicações legais, as famílias podem fazer escolhas informadas que homenageiam seus entes queridos de uma forma que também respeita o planeta.

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Durante meados do século XIX, Portugal experimentou mudanças significativas nas práticas de sepultamento, amplamente influenciadas por preocupações de saúde pública e legislação governamental. A transição das práticas tradicionais de sepultamento dentro das igrejas para o estabelecimento de cemitérios públicos marcou uma mudança fundamental nas atitudes sociais em relação à morte e ao sepultamento.

A prática de inumar no interior dos templos encontra-se perfeitamente estabelecida no séc. XVI. Os dinheiros pagos pelas famílias dos defuntos, para as igrejas, constituíam uma importante fonte de receitas para as comissões encarregadas de as manter e as Visitações Quinhentistas revelam a existência de valores mais ou menos estabelecidos para esta prática, preços que variam em função do tipo de sepultura escolhida e do tempo no decurso do qual esta se encontrava associada uma determinada família. Por outro lado, as Visitações não referem a obrigação à paga de qualquer tipo de valor quando a inumação ocorria no exterior das igrejas, fosse no alpendre, no adro ou no cemitério próximos, vigorando aí a tradição da gratuitidade. 

Embora o atraso de Portugal em termos legislativos seja evidente, o país não ficou completamente alheio às novas ideias sobre saúde pública. Conceitos relacionados à higiene e à medicina preventiva conquistaram apoio não apenas entre médicos e intelectuais, mas também entre altos funcionários do Estado absolutista, como o Intendente da Polícia, Pina Manique.

De facto, as preocupações de Pina Manique com a saúde tornaram-se bastante evidentes na longa luta que ele travou, desde 1787, junto ao governo da Rainha D. Maria I, em prol da criação de cemitérios, especialmente em Lisboa, fundamentando-se na promoção da saúde pública e no respeito pelos mortos.

Apesar da hesitação, ou até mesmo da resistência, que os planos de Pina Manique geraram, a sua batalha não foi totalmente em vão. Em 1796, uma ordem régia determinou a aquisição de terrenos para a construção de dois grandes cemitérios fora dos muros da capital. Isso não era uma iniciativa inédita. Embora as igrejas, os adros e os claustros tivessem sido locais comuns de sepultamento, desde o século XVI já existiam cemitérios em Lisboa como prevenção contra a peste e outras doenças. No entanto, no final do século XVIII, a abordagem em relação a essas medidas havia mudado radicalmente: tratava-se agora de uma verdadeira campanha, embora limitada, contra os locais de sepultamento tradicionais, feita em defesa dos novos princípios sobre higiene e saúde pública. Essa campanha continuou mesmo após a passagem de Pina Manique, gerando publicações académicas que discutiam, de maneira detalhada, os sérios riscos à saúde pública resultantes de sepultamentos nas igrejas. Contudo, isso não resultou em nenhuma acção legislativa abrangente.

No Projecto de Regulamento Geral da Saúde da Assembleia Legislativa, estava previsto o veto a sepulcros nas igrejas, assim como a instalação de cemitérios em todas as paróquias do reino. No entanto, essa proposta nunca chegou a ser debatida nas Cortes.

A falta de legislação nessa área perdurou até Setembro de 1833, quando, na guerra civil e após a tomada de Lisboa pelo exército liberal, o governo de D. Pedro emitiu uma ordem ao Cardeal Patriarca e ao Intendente da Polícia, proibindo os sepultamentos nas igrejas, nos adros e nos claustros da capital. 

Argumentos de cunho sanitário foram utilizados para justificar a situação, com o governo enfatizando que "essas práticas danosas à saúde pública" já tinham sido eliminadas "em todos os países de fé católica." Contudo, a proibição foi imposta, principalmente, por motivos claros e directos relacionados à epidemia de cólera que assolava a cidade. Usando justificativas contemporâneas, recorreu-se a uma solução bastante antiga. Uma norma legal de Outubro de 1833 evidenciava a pressa com que essas acções eram implementadas. Era ordenada a criação temporária de cemitérios nas imediações de três conventos na capital: Graça, Barbadinhos e Santa Apolónia. 

A implementação dessas normas gerou contestações que o governo criticou fortemente. De facto, não apenas as sepulturas dentro das igrejas continuavam, como também eram observados "graves abusos", incluindo "o abandono de corpos nas ruas", um acto considerado intencional e que tinha como propósito "incitar no povo aversão às decisões do governo".

Diante disso, o governo designou o Vigário Geral do Patriarcado para investigar as causas desses “abusos”, sugerindo que poderiam ter origem na má vontade dos líderes religiosos. Contudo, as restrições impostas na capital em 1833 não foram motivadas apenas por situações momentâneas. Elas foram seguidas, um ano após o término da guerra, pela promulgação de regulamentações que condenavam de forma definitiva as práticas funerárias tradicionais.

A lei de 21 de Setembro de 1835 estabelecia a criação de cemitérios que deveriam ser localizados fora das áreas urbanas, além de proibir de forma definitiva os enterramentos nas igrejas. A responsabilidade pela implementação da lei recaiu sobre as autoridades locais, noemadamente sobre as municipalidades e as freguesias, que deveriam escolher terrenos municipais mais adequados para a construção dos cemitérios, assim como determinar a quantidade necessária por município.

Um decreto datado de 8 de Outubro detalha ainda mais os aspectos da lei, acrescentando directrizes sobre o próprio acto de sepultar. As autoridades locais, incluindo os conselhos paroquiais, deveriam não apenas garantir a manutenção dos cemitérios, mas também cuidar dos serviços funerários. Assim, era ordenado que tivessem à disposição caixões e "todos os outros materiais essenciais para o transporte e sepultamento adequado dos falecidos. Essas novas atribuições teriam o financiamento suportado pela população, por meio do pagamento de uma taxa. Aqueles que eram mendigos, soldados ou cidadãos sem uma renda anual de 100.000 réis (os excluídos do censo eleitoral) não precisariam pagar. O valor da taxa a ser recolhida dos contribuintes seria definido pelos municípios e pelos conselhos paroquiais, considerando a respectivo rendimento.

Em janeiro de 1837, a administração setembrista reestruturou os serviços do Ministério do Reino que eram os responsáveis pela política de saúde pública. Essa reestruturação resultou na unificação das normas de 1835 sobre os cemitérios configurando um novo quadro legal. Uma rede sanitária centralizada e hierárquica foi criada, com o Conselho de Saúde no topo. Este conselho tinha representantes e sub-representantes em níveis regionais e locais. Nos distritos, os delegados de saúde precisavam, obrigatoriamente, ser médicos. No nível municipal, as autoridades de saúde eram as autoridades administrativas que estavam em funções. O “cabeça de saúde”, a autoridade sanitária na paróquia, era responsável imediatamente pela implementação das normas legais estabelecidas em 1835.

A partir de então, um novo procedimento burocrático deveria ser seguido para os enterros. Estes precisavam ser autorizados por uma licença, denominada “bilhete de enterramento”, emitida pelo “cabeça de saúde” após a apresentação de uma certidão de óbito fornecida por um médico. Os preços dos “bilhetes de enterramento” eram fixados por lei: 360 réis nas cidades e 240 réis nas outras localidades. No novo sistema, apenas um terço dessa receita permaneceria com a paróquia, enquanto os outros dois terços seriam destinados ao Conselho de Saúde.

Durante o governo de Costa Cabral, a legislação de 10 de Janeiro de 1844 novamente reorganizou os serviços de saúde pública. Essa lei, frequentemente chamada de “lei da saúde”, é geralmente vista como responsável pelos primeiros tumultos Norte do País. No entanto, as novas normas para os serviços de saúde não diferiam muito das de 1837, especialmente no que diz respeito às regras sobre inumações. A estrutura hierárquica das autoridades sanitárias em níveis central, regional e local permaneceu, mas houve progressos em direcção à exigência da participação dos profissionais de saúde, nomeadamente em relação ao perfil das autoridades municipais; os antigos subdelegados de saúde, agora chamados de vice-provedores, precisavam ser médicos municipais e não mais administradores dos concelhos, como já estabelecido na legislação de 1837.

A Lei estipulava ainda que:

1. O preço dos “bilhetes” seria o mesmo para todas as pessoas de uma mesma família.

2. O preço de enterramento dos mendigos, dos soldados, dos marinheiros do Estado, dos guardas municipais, de todos aqueles que nos termos da lei eleitoral não pudessem votar nas eleições primárias (pagando menos de 100.000 réis de imposto) como os de pessoas pertencendo a corporações religiosas seriam gratuitos.

3. Os “bilhetes” concedidos seis meses depois da publicação da lei seriam tarifados pelo triplo da taxa respectiva em todas as aglomerações onde não existissem cemitérios até à data da sua construção.

Com as novas regras para os serviços de saúde, a população revolta-se, especialmente na região do Minho, onde em 1846 aconteceram os mais graves tumultos que iniciaram a revolta conhecida como da “Maria da Fonte”.

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Isso é sugerido pelas informações divulgadas pelo Periódico dos Pobres do Porto, que relata a intervenção militar em várias paróquias do distrito do Porto, como Jovim (no concelho de Gondomar) e Peroselo (no concelho de Penafiel). Na verdade, em ambas as situações, os moradores chegaram a querer desenterrar os corpos do cemitério para realizar novos sepultamentos na igreja. No entanto, as iniciativas da população, que reflectiam a vontade de manter as antigas tradições funerárias, nem sempre enfrentavam a oposição do clero ou das autoridades locais. Em algumas ocasiões, essas acções encontraram a tolerância, ou até mesmo a conivência desses líderes, fosse por empatia ou devido à pressão crescente do povo ser incontrolável. 

De uma forma sintetizada podemos enunciar a Legislação mais significativa em relação à regulamentação dos cemitérios e das práticas de inumação:

1 . Alvará de 18 de outubro de 1806 : Este alvará regulava a criação de “Campos Santos” por misericórdias — instituições beneficentes responsáveis pelos cuidados com os mortos. Ele permitia aos responsáveis estabelecer cemitérios fora das povoações, mediante requerimento às autoridades eclesiásticas, zelando pela localização adequada e regras de construção para garantir a saúde.

2. Projecto de Regulamento Geral da Saúde: Redigido em 1820 (embora oficialmente apresentado em 1821), foi uma tentativa pioneira e abrangente de estruturar a saúde pública em Portugal. Surgiu no contexto da Revolução Liberal de 1820, que procurava modernizar e racionalizar a administração do Estado, inspirando-se nas ideias do Iluminismo. Entre outros objectivos, este Regulamento propunha: a vigilância e prevenção (polícia médica) com implementação de medidas preventivas, como inspeções periódicas, recolha de dados sobre epidemias e proibição de enterros sem certidão de óbito; a regulação dos cemitérios e actos funerários exigindo que nenhum cadáver podesse ser sepultado sem boletim médico — ideia já presente desde 1814 e reforçada neste projeto. A proposta para a construção de cemitérios e a proibição dos enterros nas igrejas foi apresentada pelo deputado do Minho e arcebispo da Baía, o beneditino Vicente da Soledade Dias Castro, natural do Porto. Ele elaborou o projecto com um discurso preambular bem estruturado, abordando os aspectos históricos e médicos da questão. Embora rejeitado, este regulamento influenciou profundamente a legislação de saúde portuguesa nas décadas seguintes, especialmente a criação do Conselho de Saúde Pública em 1837 por Passos Manuel, que retomou muitas das ideias pioneiras deste projeto.

3. Lei de 1835: Um marco significativo foi o decreto publicado em 21 de Setembro de 1835, por Rodrigo da Fonseca Magalhães, que determinou a abertura dos cemitérios e estabeleceu medidas de higiene para os sepultamentos, espelhando as leis napoleónicas francesas. Esta foi a primeira legislação que proibiu formalmente os enterros nas igrejas, marcando uma mudança importante nas práticas funerárias. A lei não se limitou a estabelecer essa proibição, mas também promoveu a construção de cemitérios extramuros nas paróquias do reino. 

    As principais regras eram:

- Localização dos cemitérios: Devem ser construídos fora dos limites das povoações, preferencialmente em terrenos requeridos às autoridades eclesiásticas, se necessário.

- Infraestrutura: Devem possuir muros com altura mínima de dez palmos, para delimitar e proteger o espaço.

- Sepulturas: As covas devem ter exatamente cinco palmos de profundidade, para garantir uma sepultura higiénica e segura.

- Dimensões das covas: Cada sepultura deve medir quatro palmos de largura e dez de comprimento, permitindo espaço suficiente para o corpo e a adequada disposição das sepulturas.

- Sepultamentos Privados: As famílias podem construir jazigos ou sepulcros particulares dentro do cemitério público, promovendo maior conforto e privacidade.

- Árvores e paisagismo: Os cemitérios devem ser orlados de árvores, contribuindo para a higiene, estética e melhor qualidade do ambiente.

- Gestão: Deve haver fiscalização rígida para assegurar que as normas sejam cumpridas, com uma autoridade competente responsável por garantir a higiene, segurança e organização dos cemitérios.

4. Portarias de 1836 e 1838: Diversas portarias foram emitidas para garantir a aplicação da lei de 1835 e para responder à resistência à sua implementação. Essas portarias exigiam que os governadores civis enviassem relatórios sobre o progresso da construção de cemitérios e impunham penalizações para enterros ilegais.

5. Decreto de 1841: Este decreto permitiu que as municipalidades utilizassem terrenos nacionais para a construção de cemitérios, respondendo a um dos principais argumentos das municipalidades sobre a falta de recursos para cumprir a nova legislação .

6. Regulamento de 1844: Este regulamento surgiu como uma resposta ao reconhecimento do governo sobre a ineficácia das legislações anteriores e expressou a vontade de garantir que as disposições fossem respeitadas .
Essas legislações e regulamentos revelam um esforço contínuo do governo em implementar práticas de inumação mais higiénicas e organizadas em resposta a preocupações de saúde pública e à resistência popular.

Podemos, assim concluir, que as principais dificuldades na aplicação da interdição de enterros nas igrejas em Portugal incluíram:

📍 Resistência Popular: Houve uma oposição significativa da população às novas práticas funerárias. Muitos continuaram a realizar enterros nas igrejas, resultando em práticas ilegais e atrasos na instalação de cemitérios.

📍 Legislação Insuficiente: A primeira lei que proibia definitivamente os enterros nas igrejas promulgada em 1835, mas a sua implementação efectiva enfrentou vários obstáculos. Até a adopção de medidas gerais, muitos ainda insistiam nas práticas tradicionais.

📍 Crise Sanitária: A interdição foi, em parte, motivada por uma epidemia de cólera, mas a urgência das medidas não foi suficiente para acabar com as práticas tradicionais imediatamente. As autoridades encontraram dificuldades para impor a nova regulamentação em um contexto de crise sanitária.

📍 Influência Eclesiástica: Certa resistência por parte do clero, revelou-se um importante apoio à negação da Lei. Exemplos de práticas de enterro em instituições religiosas contradiziam as novas leis .

📍 Desigualdade Regional: A aplicação das novas disposições variou consideravelmente entre as diferentes regiões do país. No Norte, por exemplo, uma maior percentagem de enterros continuava a ocorrer nas igrejas em comparação com o Sul, indicando que a resistência era localizada e muitas vezes forte.

Durante a administração de João Crisóstomo, em 16 de Dezembro de 1890, foi publicado o primeiro regulamento referente à construção de cemitérios. Esse documento estabeleceu, entre outras coisas, a distância mínima necessária do cemitério em relação às áreas urbanas (143 m), as directrizes para a edificação dos muros, as distâncias em relação às escolas primárias e as normas de salubridade para a inumação.

Com o progresso científico, algumas normas daquele regulamento tornaram-se obsoletas e, para actualizá-lo, foi criado o Decreto 44.220/62, datado de 3 de Março. Esse decreto estabeleceu, pela primeira vez, as directrizes para a construção de cemitérios, definiu prazos para a inumação, baniu o enterramento de caixões de chumbo, zinco ou madeiras pesadas, permitindo seu uso apenas em jazigos. Também introduziu um período de 5 anos para a exumação (actualmente 3 anos), exigiu a apresentação de projectos para sepulturas, delimitação de áreas, construção de jazigos e espaços verdes, além de arruamentos, tudo sob a supervisão e regulamentação da administração pública, incluindo os Tribunais e as Câmaras Municipais e Freguesias.

Esse decreto esteve em vigor por mais de 25 anos, sendo anulado pelo Decreto-Lei n.º 411/98, datado de 3 de Março, que define as normas jurídicas para a remoção, transporte, enterro, exumação, transladação e cremação de corpos e restos mortais, além da relocação de cemitérios. Posteriormente, houve alterações principalmente na sua forma, com a publicação dos Decretos-leis 5/2000 em 29 de Janeiro, 138/2000 em 13 de Julho e 168/2006 em 16 de agosto, o que resultou na criação de diversos Regulamentos Municipais em todo o território nacional.

Práticas e representações culturais de uma "boa morte"

Como já foi referido, o século XV, em Portugal, foi marcado por um declínio demográfico devido à Peste Negra ocorrida no século XIV e outras epidemias que afectaram a Península Ibérica. Os problemas comuns da Idade Média, como alta mortalidade infantil e baixa expectativa de vida, pioraram a situação. A vida era marcada por uma familiaridade com a morte, pois a presença da morte súbita, especialmente devido às pragas, intensificava o medo em torno dela. A peste, como um tipo de morte súbita e brutal levou a rituais funerários mínimos e à negligência do corpo morto.

As práticas delineadas no Sínodo de D. Pedro Vaz Gavião, no ano de 1500, na Guarda, incluíam sacramentos de cura, comunhão e confissão, bem como testamentos e últimos rituaisO sacramento da cura deveria ser oferecido primeiro, com o objectivo de curar os doentes. Se a cura falhasse, a comunhão e a confissão tornavam-se cruciais para alcançar uma boa morte. Apesar de os indivíduos escolherem seus caminhos ao longo da vida, os momentos que os aproximavam da morte eram considerados os mais importantes, ainda que o indivíduo escolhesse entre os caminhos que o levariam ao paraíso e os caminhos que o levariam ao inferno os momentos anteriores à morte eram os mais importantes, pois solidificavam essas escolhas.

O sacramento da cura tinha que ser autorizado pela Igreja, com deliberações severas para o não cumprimento. Este sacramento lidava mais com a cura da alma do que do corpo. A confissão correcta foi autorizada a seguir as directrizes clericais e, entre os séculos XIII e XV através dos manuais para confessores que circularam amplamente na Europa. A confissão frequente era encorajada, embora muitos só se confessassem na Páscoa ou quando enfrentassem a morte iminente. No século XV, a confissão era uma prática profundamente enraizada, entendida como um meio de obter perdão e acesso à Eucaristia. O clero soube que os leigos se confessavam com menos frequência, causando insatisfação entre os fiéis. No entanto, os cristãos não eram obrigados a confessar-se mais do que uma vez por ano, o que levou a maioria a confessar-se apenas durante a Páscoa. A presença de confessores era considerada às vezes mais crucial do que a de médicos, pois a alma era considerada mais valiosa do que o corpo.

A comunhão para os doentes pode ocorrer em casa se ficarem gravemente doentes. Um altar também poderia ser montado fora da igreja em casos extremos para garantir a confissão antes da morte. Houve consequências rigorosas para o enterro daqueles que morriam sem confissão, reforçando a importância dos ritos sacramentais.

Os testamentos também se tornaram componentes sociais cruciais após o século XIII como uma forma de se desapegar das posses terrenas e evitar a ganância. Eles reflectiam os desejos do falecido em relação ao seu funeral e sepultamento. Como o momento da morte é imprevisível, os testamentos eram frequentemente redigidos ou revistos ao longo da vida. O Sínodo de 1500 insistiu em manter as disposições dos testamentos.



Por fim a extrema-unção. Dos três sacramentos mencionados, este era o único voltado exclusivamente para aqueles que estavam prestes a falecer. De acordo com o sínodo de 1538, a administração deste sacramento deveria ser feita por dois clérigos em situações normais, podendo ser realizada por um único sacerdote em casos de urgência. Além disso, o sínodo estipulava que, se a pessoa falecesse sem receber a extrema-unção, os padres teriam que pagar uma multa de 50 réis (Constituições do arcebispado de Braga, 1538, fl. 16v). Este sacramento destinava-se a todos os cristãos que se encontrassem em risco de morte, desde que mantivessem suas faculdades mentais. O sínodo de 1697 proibia a administração da extrema-unção a menores, pois não tinham a idade necessária para pecar mortalmente, e a indivíduos em pecado mortal público. No caso de pessoas com deficiências mentais ou que não podiam falar, a extrema-unção poderia ser administrada se um fiel confirmasse a sua intenção ao sacerdote. Se o padre não soubesse se o enfermo estava vivo ou morto, era permitido administrar o sacramento. O sínodo de 1697 reiterou as directrizes do de 1538, enfatizando que a extrema-unção deveria ser feita por dois sacerdotes, embora permitisse que, na ausência de um deles, um leigo pudesse auxiliar o clérigo (Constituições synodaes, 1697, pp. 93–95). O sínodo também mencionou alguns itens necessários para a celebração da extrema-unção, como um prato com água, uma toalha, o recipiente com os santos óleos, uma patena com estopas, a cruz, e um livro contendo as fórmulas que o padre deveria ler. O sacerdote untava a boca, os olhos e as palmas do moribundo. O principal objectivo da extrema-unção era proporcionar um bom falecimento, recordando ao enfermo a paixão de Jesus Cristo (Constituições synodaes, 1697, pp. 96–97).

Finalmente, os rituais realizados na morte, não podiam ocorrer aos domingos ou dias festivos, condenando a Igreja os lutos excessivos e expressões perturbadoras de pesar, como gritos, beijos nos defuntos, pois assemelhavam-se às tradições pagãs, permitindo apenas orações pela alma. Embora essas proibições fossem difíceis de importar, a prática do luto por meio de carpideiras contratadas continuou durante a Idade Média, apesar da oposição da Igreja.

Durante a Idade Média, os bispos portugueses estiveram continuamente focados na administração dos sacramentos. As repetidas menções nas constituições sinodais destacaram a necessidade de transmitir directrizes essenciais ao clero. Esperava-se que o clero verificasse os indivíduos em suas paróquias para oferecer os sacramentos. O não cumprimento das práticas preparatórias poderia resultar não apenas numa morte ruim, mas também num destino de sepultamento diferente, pois aqueles que morriam sem sacramentos enfrentavam restrições no sepultamento, sendo negados rituais funerários adequados e locais de sepultamento sagrados.

A tradição funerária em Portugal durante os séculos XVIII e XIX foi marcada por uma complexa interação entre práticas religiosas, culturais e sanitárias. Durante a segunda metade do século XVIII, a resistência à mudança ainda era forte, especialmente devido à influência da Igreja reflectindo uma crença arraigada na sacralidade dos espaços religiosos. A literatura crítica sobre práticas funerárias começou a emergir, com intelectuais questionando a adequação dos sepultamentos nas igrejas, especialmente em um contexto de saúde pública deteriorada, exacerbada por eventos como o terremoto de Lisboa em 1755.

Século XVIII e XIX

A história de Portugal no final do século XVIII e início do XIX foi marcada por grandes mudanças na monarquia e na política. Entre 1750 e 1777, Portugal foi governado por José I, cuja monarquia era fraca, mas seu primeiro-ministro, o Marquês de Pombal, trouxe energia ao governo. Pombal é visto como uma figura importante do absolutismo esclarecido, conhecido por implementar reformas significativas, como a expulsão dos jesuítas e a redução do poder da Igreja Católica, reformas essas que ajudaram a criar uma classe média numa sociedade que era principalmente feudal. 

Portugal foi invadido pelas tropas de Napoleão em 1808, fazendo com que a família real se mudasse para o Brasil. Os franceses afirmaram que a casa real de Bragança não estava mais no poder. A corte permaneceu no Brasil até 1821, embora a ocupação francesa terminasse em 1811. Sob o governo de William Beresford, João VI teve que voltar e aceitar uma constituição liberal. Após a morte de João, entre 1832 e 1834, houve uma guerra civil entre seus filhos, Pedro e Miguel. Pedro, defensor do liberalismo, venceu, mas ambos os irmãos morreram em 1834. Maria, filha de Pedro, tornou-se rainha. O liberalismo predominou na política portuguesa do século XIX, mantendo a monarquia constitucional apesar de algumas revoltas.

Père Lachaise - França

As reformas funerárias começaram a ganhar força no início do século XIX, impulsionadas por legislações que buscavam estabelecer cemitérios fora das cidades, como o famoso cemitério de Père Lachaise na França, que serviu de modelo. No entanto, a implementação dessas leis enfrentou resistência significativa, com a população e as autoridades locais hesitantes em abandonar as tradições estabelecidas. A construção de novos cemitérios, como os de Lapa e Prazeres, ocorreu, mas a aceitação popular foi lenta, refletindo um apego às práticas tradicionais.


Cemitério da Ordem da Lapa

Inspirado nos cemitérios românticos europeus, como o Père Lachaise em Paris, o Cemitério da Lapa apresenta um design ajardinado com arruamentos e monumentos funerários elaborados. Tornou-se um espaço de meditação e memória, acolhendo sepulturas de figuras ilustres da sociedade portuense, como Camilo Castelo Branco e Soares de Passos 

Além disso, a classe média emergente, que poderia ter sido um motor de mudança, representava apenas uma pequena fração da população, limitando a pressão por reformas. As tentativas de conciliar requisitos sanitários com práticas tradicionais incluíram a construção de altares em cemitérios e a introdução de simbolismo religioso para suavizar a transição para sepultamentos ao ar livre. Apesar das dificuldades, o século XIX testemunhou uma gradual aceitação da necessidade de cemitérios, embora a transição não tenha sido linear e tenha sido marcada por controvérsias e resistência. Em 1875, a vasta maioria das cidades proeminentes de Portugal contava com um cemitério público. Em diversas situações, os novos espaços destinados a sepultamento infringiam os critérios sanitários estabelecidos para garantir uma distância salubre entre os locais de sepultura e as áreas habitacionais, com os cemitérios sendo edificados a meros metros da igreja.

Onde eram sepultados os não católicos?

Às vezes, os protestantes eram enterrados perto do mar, como foi o caso dos súditos britânicos no Porto no início do século XVIII. No século XVIII, o crescimento das comunidades britânicas em Lisboa e Porto levou a tratados que superaram o preconceito religioso. O primeiro cemitério britânico foi estabelecido em Lisboa no início do século XVIII. O complexo tem um muro perimetral sólido e não são permitidas construções religiosas. À medida que o século avançava, Porto e outras cidades também estabeleceram cemitérios para ingleses e outras nacionalidades protestantes. Este elemento da tradição funerária portuguesa teve a maior influência na estética do desenvolvimento posterior dos cemitérios. Esses locais ficam fora dos muros da cidade e oferecem proteção semelhante contra animais.

Sabemos que os rituais funerários em Portugal variam entre as regiões, reflectindo tradições locais, influências religiosas e práticas comunitárias. Apesar de a Igreja Católica ter um papel predominante nos funerais portugueses, algumas diferenças regionais são notáveis.


Gustave Courbet.1850

Norte de Portugal

  • Velório prolongado : Em muitas aldeias do Norte, o velório pode durar uma noite inteira, com a presença de familiares, amigos e vizinhos.
  • Luto específico : Em algumas zonas rurais, o luto ainda é marcado para vestuário preto durante meses ou anos, especialmente para viúvas.
  • Choros e lamentações : Ainda se encontram, sobretudo em Trás-os-Montes e Minho, mulheres que expressam o luto de forma intensa, às vezes com pranto colectivo (as chamadas "carpideiras").

Centro de Portugal

  • Procissões a pé : Em várias aldeias do Centro, o caixão pode ser transportado por amigos ou familiares a pé até ao cemitério.
  • Cantos e rezas comunitárias : Grupos organizados podem entoar cânticos religiosos ao longo do velório e do cortejo fúnebre.
  • Merenda após o funeral : Em algumas localidades, é costume os familiares oferecerem uma refeição aos presentes após o enterro.

Sul de Portugal (Alentejo e Algarve)

  • Silêncio e sobriedade : Ao contrário do Norte, os funerais no Alentejo tendem a ser mais silenciosos e contidos.
  • Superstições: Em algumas zonas do Alentejo, existem superstições sobre os mortos, como evitar passar por certos caminhos após um funeral.
  • Reuniões familiares : É comum que uma família se junte para refeições em memória do falecido, especialmente nos sete dias após o enterro.

Ilhas (Açores e Madeira)

  • Círios e novenas : Nos Açores, é comum haver novenas (orações diárias durante nove dias) para a alma do falecido.
  • Exposição do corpo em casa : Em algumas ilhas mais pequenas, o velório pode ainda ser feito na casa do falecido antes de seguir para a igreja.
  • Procissões fúnebres longas : Em certas localidades, os funerais incluem longas caminhadas até o cemitério, com paragens para rezas.

Apesar dessas diferenças regionais, o respeito pela tradição católica e a forte componente comunitária marcam os rituais funerários em todo o país.

No final do século XIX, início do século XX, os rituais de luto em Portugal passaram por uma transformação profunda. Essa mudança reflecte não só a modernização da sociedade, mas também as influências urbanísticas, estéticas e até seculares que vinham se impondo na cultura da época.

Historicamente, os rituais de luto eram marcados por tradições fortemente religiosas e comunitárias. Eles envolviam o uso de vestimentas específicas, cerimónias intensas e práticas colectivas que ajudavam a lidar com a perda. Porém, com o avanço das ideias modernas e a crescente influência do pensamento secular, essas práticas começaram a ser reconfiguradas. O luto passou a ser encarado não apenas como um momento de profunda dor, mas também como uma ocasião para expressar, de forma mais contida e ritualizada, a memória e a identidade social do falecido.

Entre as principais mudanças, destacam-se:

Transformação dos espaços de sepultamento.

  Os enterros realizados em terrenos consagrados, próximos das igrejas, foram substituídos pela criação de cemitérios públicos e organizados. Esses espaços, muitas vezes planejados com forte carga arquitectónica e simbólica, começaram a funcionar como verdadeiros “museus da morte”, onde a arte funerária se transformava em manifestação de status e memória histórica.  

Reconfiguração da celebração do luto.

  Enquanto antes o luto se expressava através de manifestações intensas e prolongadas – com práticas comunitárias e religiosas marcadas por um forte simbolismo – no final do século XIX ele se revestiu de uma formalidade que incorporava elementos seculares. Funerais passaram a ser eventos mais estruturados, com discursos, cerimónias padronizadas e uma certa contenção emocional, reflectindo também as distinções sociais.  

Valorização do simbolismo e da arte funerária:

  O surgimento de capelas imponentes e túmulos ornamentados revelou uma tendência em que os monumentos funerários não eram apenas locais de descanso final, mas também formas de prestar uma homenagem duradoura. Esses elementos artísticos permitiam que familiares e comunidades expressassem a sua memória e identidade, transformando o luto num ato estético e social.  

Estas mudanças evidenciam uma transição na maneira de encarar a morte: de um ritual puramente religioso e comunitário para uma celebração que, enquanto homenageava o falecido, também comunicava modernidade, distinção social e reafirmação da identidade. As transformações nos rituais de luto foram, assim, parte de um movimento mais amplo de reconceituação dos valores e das tradições — uma resposta às novas demandas urbanas, à influência da ciência e à reinterpretação cultural da própria mortalidade.

Nos finais do século XX, os rituais de luto já vinham assumindo novas nuances, impulsionados por processos de urbanização e a crescente influência do pensamento secular. Em ambientes urbanos, tornou-se comum observar uma expressão do luto mais individualizada e, muitas vezes, reservada. A transformação social fez com que, mesmo mantendo elementos tradicionais e religiosos, a manifestação pública da dor passasse a ser vista com uma certa cautela, onde sentimentos como a vergonha e a intimidade do luto ganhavam espaço na dinâmica familiar e restrita ao círculo íntimo.

Já no século XXI, a revolução digital e as mudanças culturais aprofundaram e diversificaram ainda mais esses processos. A incorporação das tecnologias da informação transformou os rituais de luto de modo híbrido: as cerimónias presenciais mantêm seus elementos consagrados, mas agora juntam-se as práticas virtuais, como a criação de memoriais online, transmissões de funerais via streaming e a partilha de homenagens e condolências em redes sociais. Esse movimento favorece uma abordagem mais colaborativa, inclusiva e personalizada, permitindo que a memória dos entes queridos seja celebrada de maneira colectiva, mesmo que a presença física não seja possível. Além disso, esse cenário contemporâneo tende a valorizar não só o processo da despedida, mas também a celebração da vida.

Para visualizar melhor essas transformações, veja a seguir uma tabela comparativa:

Em resumo, a transição dos rituais de luto mostra como as sociedades têm procurado adaptar práticas tradicionais aos anseios da modernidade e, mais recentemente, às possibilidades trazidas pela era digital. Essa evolução permite que o luto seja vivido de forma que contemple tanto a individualidade quanto a partilha colectiva, integrando novas ferramentas de comunicação e suporte afectivo.

Cemitérios históricos e monumentais em Portugal:

Cemitério Britânico, em Lisboa;
Cemitério Central de Aveiro;
Cemitério da Colónia Judaica de Faro;
Cemitério da Conchada, em Coimbra;
Cemitério da Lapa, no Porto;
Cemitério de Agramonte, no Porto;
Cemitério de Braga;
Cemitério de Guimarães;
Cemitério de Lamego;
Cemitério de Santo António do Carrascal, em Leiria;
Cemitério de Viana do Castelo:
Cemitério do Alto de S. João, em Lisboa;
Cemitério do Prado do Repouso, no Porto;
Cemitério dos Hebreus em Angra do Heroísmo;
Cemitério dos Ingleses, em Elvas;
Cemitério dos Prazeres, em Lisboa;
Cemitério Setentrional da Figueira da Foz;




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