1. Introdução
O estudo da toponímia permite aceder a dimensões materiais e simbólicas da história urbana, revelando traços de práticas quotidianas, redes de sociabilidade e formas de poder. No Porto, o topónimo "Cruz das Regateiras", associado à freguesia de Paranhos, testemunha a centralidade das mulheres populares na estrutura económica da cidade e os mecanismos de regulação fiscal e simbólica a que estavam sujeitas.
Planta de 1855
2. As regateiras e o circuito de abastecimento
As regateiras constituíam uma figura-tipo do Porto oitocentista, reconhecíveis pela sua presença diária nos caminhos entre as hortas periféricas e os centros de venda urbanos. Desempenhavam funções de abastecimento de géneros alimentares — hortaliças, frutas, ovos, flores —, que transportavam em açafates, muitas vezes ao longo de longas distâncias, desde freguesias como Paranhos ou Ramalde até à cidade baixa e à Ribeira(1).
O seu trabalho era regulamentado por normas fiscais municipais que impunham a apresentação das mercadorias nos chamados postos de verificação camarária. Um desses postos situava-se junto ao cruzeiro da Cruz das Regateiras, onde as vendedoras deviam mostrar o conteúdo dos açafates aos fiscais e pagar o imposto correspondente (2). Este mecanismo permitia ao município controlar o comércio ambulante e assegurar receita, mas também operava como dispositivo de vigilância e de classificação social.
3. Um espaço de sacralidade e sociabilidade popular
O termo “Cruz” refere-se a um antigo cruzeiro de pedra, marco religioso comum nas freguesias periurbanas, que funcionava como ponto de referência, paragem e oração para as regateiras. Este cruzeiro foi mais tarde transferido, não para o adro da Igreja Paroquial de São Veríssimo de Paranhos, conforme ainda hoje é citado, mas, segundo o Padre Manuel Martins, pároco da freguesia, está devidamente preservado nas instalações anexas à Igreja Paroquial(3).
Próximo do cruzeiro existia uma capela votiva, cuja padieira ostentava a inscrição: "Obra da caridade: ano de 1732". No seu interior havia capelas laterais e referências devocionais como "Entrada para beijar o Senhor morto". Durante o mês de agosto realizava-se no local uma festa em honra de Nossa Senhora das Dores, animada por arraiais com cantares, danças, foguetório e comidas tradicionais (4). Estes elementos evidenciam a articulação entre fé, trabalho e festa, típica das culturas populares urbanas e rurais do Antigo Regime e do liberalismo oitocentista.
A tradição oral local indica que a Cruz das Regateiras era um ponto de paragem para descanso e oração. As regateiras faziam ali uma pausa, pedindo protecção para o percurso e força para o trabalho. A cruz teria assim uma função devocional, mas também prática — marcava uma etapa da dura rotina diária destas mulheres.
Em meados do século XIX, o lugar da Cruz das Regateiras passou a ser designado como Largo de 25 de Março, evocando um episódio da Guerra Civil Portuguesa. A 25 de março de 1833, travou-se nesse local um confronto entre tropas miguelistas e milícias liberais lideradas por José Joaquim Pacheco, conhecido como Coronel Pacheco, que viria a morrer mais tarde noutro combate, junto à Areosa (5).
Esta alteração toponímica revela o processo de substituição da memória social e feminina por uma memória política e militar masculina, mais consentânea com os projetos de construção do Estado liberal. A substituição do nome “das regateiras” reflete uma dinâmica frequente de marginalização dos sujeitos populares nos discursos oficiais da cidade.
5. Conclusão
A Cruz das Regateiras constitui um caso emblemático da forma como o espaço urbano inscreve (e apaga) memórias sociais. A sua história reúne elementos de trabalho feminino, religiosidade popular, fiscalização municipal e identidade territorial. A análise toponímica e patrimonial deste sítio permite recuperar a centralidade das mulheres na economia urbana e evidenciar as tensões entre a memória oficial e as práticas quotidianas.
A preservação da memória da Cruz das Regateiras, hoje limitada ao cruzeiro e ao nome residual da Rua da Cruz, representa um desafio e uma oportunidade para a revalorização do património imaterial e social da cidade do Porto.